sábado, 18 de abril de 2015

Começo


Vejo-te um pouco como se já não houvesse
uma casa para nós. As grandes perguntas estão aí
por todo o lado, onde quer que se respire, dentro
dos próprios frutos. É o começo da noite
e os cinzeiros já estão cheios de meias palavras:
porque escolhemos tão pouco
aquilo que nos pertence?

Vejo-te de olhos fechados enquanto me confiavas
a tua história - à mesa da cozinha, quase um espelho,
quase uma razão. As minhas canções preferidas
pareciam convergir para ti a certa altura, dir-se-ia
que te vestias com elas. E no entanto
como se apressaram as grandes florestas a invadir
as gavetas, como misturaram as raízes
no eco que fazia o teu desejo contra mim.

Rui Pires Cabral
A Super-Realidade (1995)
in «Morada»
ed. Assírio e Alvim, 2015
fotografia de Nikos Stamatopoulos

1 comentário:

Graça Martins disse...

Gosto do poema e da imagem. Muito boa a sintonia!