sábado, 14 de março de 2015

Ausência cinco



Tua carne sai do ventre dos guindastes que procuras,

trazes na mão as folhas que moem esta ternura
morta
e é lá que os dias se levantam
na cor que escolheste para morreres
junto ao meu corpo incinerado e calmo.

Sinto que meu cansaço é macio
como as noites de diamantes tumultuosos.

Tu encontravas pequenas caixas intercalares,
a mim nasciam-me insectos sedentos de luz,

bania-me no espaço rudimentar deste peito lateral
até que nas manhãs após teu coito

teus véus se construíam em direcção aos elementos.

Jaime Rocha
Beber a cor
1983, ed. &etc
pintura de Graça Martins

terça-feira, 3 de março de 2015

Cinco novas bandas (parte 4)

(Parte 1: ler aqui)   (Parte 2: ler aqui)   (Parte 3: ler aqui)

Um pensador desiludido e sem esperança como E.M. Cioran pôde reconhecer com bastante acuidade que [n]ous devons la quasi-totalité de nos découvertes à nos violences, à l'exacerbation de notre déséquilibre*. Ao reconhecer a violência como móbil da actividade humana (e consequentemente, da actividade criativa), Cioran atribui-lhe um valor edificante que, em muito, não pode ser negado. Sem discórdia, não há evolução nem revolução. O rock reconhece esta violência. O que ele pressupõe é uma experiência profunda do mundo, que é depois transformada em música. Por isso as grandes canções rock se fazem a partir da agressividade, da raiva, da violência, da angústia, da luxúria: trata-se de reconhecer que vamos à descoberta do mundo através de uma experiência aprofundada da nossa violência.
As páginas do ensaio Penser contre soi podem constituir uma explicação bizarramente verosímil da estrutura básica do rock enquanto género. A expressão extrema pressupõe uma experiência extrema do mundo, uma pesquisa por aquilo que de mais elementar e incontrolável existe na natureza e na consciência humana. Ao ler certas páginas mais angustiantemente realistas de Cioran, não é difícil imaginá-lo a ouvir uma banda como as referidas acima. Aliás, estando em causa essa experiência violenta e derradeira da consciência, não seria estranho dizer que Cioran, bem como Nietzsche, Sade, Kafka, Artaud, Lovecraft, Edvard Munch, Hans Bellmer, Michelangelo ou Caravaggio, se vivessem nos dias de hoje e fossem músicos, estariam provavelmente numa banda de rock. Os seus inquéritos aos estados últimos da consciência deixam-nos estranhamente próximos do trabalho dos melhores músicos rock. Porque esse inquérito é o que o rock tem de mais elementar, e é esse também o seu maior perigo. Encontramos em Cioran: La formule de l'enfer? C'est dans cette forme de révolte et de haine qu'il faut la chercher, dans le supplice de l'orgueil renversé, dans cette sensation d'être une térrible quantité négligeable, dans les affres du «je», de ce «je» par quoi commence notre fin**.
De acordo com isto, o que fica claro é que não outra saída para a experiência realista e profunda do mundo senão a própria violência. Mas, nessa violência, esconde-se igualmente a nossa aniquilação, a possibilidade de encontrar o inferno. O rock reconhece sempre o risco da anulação do próprio «eu», que é o perigo de ir longe demais no conhecimento do mundo e de si mesmo, e de ser incapaz quer de regressar a um estado de inocência ignorante, quer de sobreviver àquilo que encontrou.
Mas nesse sentido, nenhum género tem uma valência tão filosófica e antropológica quanto o monosprezado rock. Só ouvido «de fora», ou então pela estirpe exclusivíssima e mui cultivada dos nossos intelectuais da alta cultura (altíssima até!) o rock parecer um género de 'gente a gritar com guitarras eléctricas estridentes atrás'. 
Perante qualquer canção de uma das cinco bandas de que falei, corremos o risco de ver ruir a barreira que nos separa da realidade e de perdermos a ilusão de um mundo que é ainda capaz de se equilibrar. Há algo de sagrado na ilusão que nos mantém sãos. Sãos, mesmo que iludidos: este podia ser o lema da nossa hipermodernidade (como lhe chama Lipovetsky) .
Mas, utilizando um verso de Coraline dos Ash is a Robot, we are crashing waves on sacred ground. E essa coragem não será necessariamente extensível a todos. Por outro lado, assume Cioran, [s]euls nos séduisent les espirits qui se sont détruits pour avoir voulu donner un sens à leur vie***. Porque só com esses aprendemos a procurar (mesmo que não encontremos) uma saída, ou a tentar diminuir a distância entre essa sagrada ilusão e a temível realidade.

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*Cioran, E.M. (1956). La tentation d'exister. Ed. Gallimard, Paris, 2011. p.9
**Cioran, E.M. (1956). op.cit. p.22
***Cioran, E.M. (1956). op.cit. p.24
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Cinco novas bandas (parte 3)

(Parte 1: ler aqui)    (Parte 2: ler aqui)

Um dos subgéneros do rock, que sofre influências directas do punk, do grunge e de algum metal, tem sido particularmente prolífero nos últimos anos. O que este subgénero parece compreender melhor é uma energia frenética associada à revolta e à tristeza. É uma espécie de avesso da realidade, uma versão interiorizada das situações mais penosas do dia-a-dia, o lado da vontade, em oposição ao lado do comportamento correcto. The greatest rock creations have come out of lust and agression, diz-nos Camille Paglia*. Esta variante específica do rock parece estar de acordo. Daí que seja ruidosa e alta, que assuma uma certa guturalidade e uma visceralidade muito contrárias àquilo que seria socialmente tolerável e aceitável. Esta é a música pré-civilizada, a expressão sorridente e trocista do que subsiste da natureza do ser humano, o pièce-de-resistence das ideias de Hobbes, Nietzsche, Freud e da própria Paglia sobre natureza e cultura. Nessa regressão, o que nos é devolvido é mais real e mais palpável do que todas as concepções sociais que nos possam ser incutidas. Aqui não há espaço para a restrição e a imposição civilizacional. As bandas que fazem este tipo de música dão-nos a besta humana libertada finalmente. A energia fortíssima que atingem é, por isso, uma energia adversária, combativa e revolucionária, sem a qual nenhuma sociedade deveria existir.


É esse o caso da banda belga The Black Box Revelation (BBR), originária da cidade flamenga de Dilbeek. Desde 2007, a dupla formada por Jan Paternoster (voz e guitarra) e Dries Van Dijk (bateria) lançou dois EP, 'Introducing The Black Box Revelation' (2007) e 'Shiver of Joy' (2011) e três álbuns, 'Set your head on fire' (2007), 'Silver threats' (2010) e 'My perception' (2011).
Num registo mais agressivo e descomplexado, com referências ao rock psicadélico e ao blues, os BBR trazem qualquer coisa que por vezes relembra vagamente a fase inicial dos Pearl Jam, mas absorve também Jimi Hendrix, os White Stripes (também eles constituídos por um vocalista/guitarrista e uma baterista), os Black Lab ou mesmo os Pink Floyd ou ainda a rouquidão pesada de uma Janis Joplin. Este tipo de mistura não é estranha àquilo que fazem, neste momento, outras bandas, começando pelos Black Keys ou os We are the ocean. Mas o que os BBR têm que parece não ser tão claro noutras bandas (e particularmente nos sobrevalorizados Black Keys) é a capacidade de recriar toda uma atmosfera em que a restrição e a rejeição veemente dessa restrição soam de uma forma bastante intensa. Os BBR têm pouco dos Nirvana, mas partilham com a banda de Kurt Cobain um certo ambiente ao qual o ouvinte é remetido. Ouvindo as canções ora enérgicas e explosivas (como I think I like you, o magistral High on a wire, Cold cold hands, Set your head on fire, Run wild ou Madhouse) ora tensas e contemplativas (2 young boys, Sleep while moving ou Never alone always together) não é difícil colocarmo-nos a nós mesmos numa pequena cidade-dormitório flamenga à saída de Bruxelas, um lugar pequeno cuja potencial calma é contrabalançada por um peso excessivo sobre a liberdade dos indivíduos. 



A música dos BBR parece emergir da necessidade de expressão, da necessidade de movimento. Os solos de guitarra eléctrica que pontuam grande parte das canções são como derivas, agitações interiores que funcionam como um terramoto na quietude de onde surgem, um teste aos limites da consciência. A alternância, em todos os álbuns, entre canções de rock puro e duro e outras mais melódicas e pausadas mantém presente uma dicotomia que cria bissectrizes ou mesmo oposições: eu vs. o mundo; explosividade vs. contenção; acção vs. meditação.
Há, por isso, uma certa espessura, uma certa tridimensionalidade na música dos BBR, que parece ser uma forma de sinceridade mais do que uma premeditação. Nas letras, essa ideia confirma-se. Muitas delas são marcadas por uma vontade de evasão sem destino (High on a wire, Sleep while moving) justificada por um ressentimento quanto ao lugar onde se existe (Sealed with thorns, Shadowman, Our town has changed for years) ou por um romantismo que, sendo desencantado, não é inteiramente derrotista (Love Kicks, I think I like you, Bitter). Jan Paternoster, como autor de letras, várias vezes fica a dever pouco a poetas contemporâneos: pelo contrário, as suas letras são imaginosas sem esquecerem a escrita de canções clássicas para o género.
Há ainda que assinalar que, de álbum para álbum, os BBR têem-se mostrado capazes de amadurecer e de equilibrar de uma forma mais subtil e densa as duas linhas de força que se encontravam mais polarizadas em 'Set your head on fire'. Por outro lado, o LP mais recente, 'My perception' aposta também numa vertente um pouco mais experimental, liga ao rock progressivo, o que é bastante claro no som estranho de 2 young boys ou na energia estranhamente sensual e sinistra de Skin.


A banda portuguesa Ash is a Robot (AIAR) recebe algumas influências que podemos também ligar ao punk e ao metal. Reviver estas tendências, como aprendemos com os Green Day, é uma ideia que fica gasta rapidamente. No caso dos AIAR, no entanto, a fusão entre o punk (ou pós-punk) de bandas como os Mars Volta, os Led Zeppelin, os Sonich Youth ou os Big Black, e o rock musculado dos Nine Inch Nails (sem a electrónica), dos Mastodon, de Marilyn Manson ou dos Tool, é tão extrema que se torna fantasmática. Há qualquer coisa muito reconhecível, muito familiar, na música dos AIAR, ao mesmo tempo que se torna extremamente difícil explicitamente saber de onde vem essa familiaridade, porque o som desta banda soa verdadeiramente puro e, paradoxalmente, novo.
Originária de Setúbal, a banda formada por Cláudio Aníbal (voz), Francisco Caetano (voz e guitarra), Renato Sousa (voz e guitarra), Bernardo Pereira (baixo) e Gonçalo Santos (bateria) editou nos últimos dois anos vários singles que por fim convergiram no álbum 'Ash is a robot' (2013).
Aquilo que ouvimos nos AIAR é menos atmosférico e mais intimista. O recurso ao metal traz consigo os resíduos de uma espécie de força natural demoníaca (que encontra na voz de Cláudio Aníbal uma expressão bastante perfeita) que é contraposta não pela complexidade barroca do gothic ou mesmo do black metal, mas antes por uma sonoridade mais suja que parece mais improvisada e mais linear. Sendo uma banda em que encontramos uma certa maturidade (relembre-se que quase todos os elementos da banda passaram por outros projectos previamente), o formato que por vezes nos remete para o rock de garagem não deixa de soar como uma auto-interpretação bastante irónica.
Se Coraline ou Karma never sleeps se fazem valer de um esquema aparentemente arbitrário entre a raiva e a meditação em voz alta, Philophobia (nas suas duas partes) ou Ariadne são exemplos de canções que alternam entre uma explosividade sólida e uma guturalidade torturada, como se Cthulhu tivesse conhecido a linguagem.



Disse acima que a música dos AIAR é menos atmosférica do que intimista, mas ela pressupõe, como não poderia deixar de ser, um determinado ambiente, que é, na música, mais sugerido do que declarado (apesar de ser confirmado pelas letras, particularmente a de Karma never sleeps). Numa expressão tão descontrolada, é impossível não imaginarmos uma espécie de raiva a partir da qual floresce a raiva que caracteriza a música. Essa atmosfera é possivelmente muito própria das cidades próximas de grandes centros urbanos ou mesmo de capitais. Em Portugal, Lisboa nunca foi capaz de criar uma banda rock verdadeiramente densa. O facto dos AIAR virem de Setúbal, cidade de uma personalidade muito marcada, associada a todo um contexto político, laboral e social de resistência muito stand your ground, talvez explique um pouco aquilo que ouvimos na música da banda. As próprias letras não passam ao lado de uma consciência politizada (mais do que declaradamente política), que é notória em Something something dark side ou em Karma never sleeps, e de uma insubmissão que é a única saída lógica para a própria estrutura das canções e do esquema instrumental, todo ele desmedido e fugidio.

(Parte 4: ler aqui)

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segunda-feira, 2 de março de 2015

Cinco novas bandas (Parte 2)

(Parte 1: ler aqui)

O percurso dos Anathema tem sido de alguma forma discreto no contexto do rock dos últimos anos, mas o seu estatuto de banda de culto dever-se-à, entre outros aspectos, ao facto de terem atravessado de forma exemplar uma espécie de progresso que outras bandas não tiveram a capacidade de fazer. Dificilmente com 'Serenades', o primeiro EP da banda, lançado em 1993, se poderia prever que os Anathema estariam, dez anos depois, a gravar um álbum como 'A Natural Disaster'. O início da banda dos irmãos Cavanagh está no doom-metal, ainda com Darren White como vocalista. Quando este abandona o projecto, os Anathema desviam-se cada vez mais no sentido de um rock progressivo que se vai tornando mais polido e complexo, definido por mutações constantes que, conquanto sejam por vezes arriscadas (e o mais recente 'Distant Satellites' é prova disso), também têm afirmado a banda como um projecto verdadeiramente amplo e variado. Os Anathema parecem ter-se deparado com a adversidade de começar a trabalhar a partir de um extremo. A transfiguração parece ter sido a saída mais inteligente para a banda. 
Os Anathema podem não ser a banda mais comum de referir para músicos que fazem percursos de alguma forma semelhantes (os Opeth seriam uma referência mais usual), mas, perante precisamente alguns projectos mais recentes, percebemos que os Anathema permitiram a uma série de músicos uma aprendizagem sobre como resolver criativamente o problema de se ficar preso num extremo do espectro musical e emocional.



É de certa forma o caso dos finlandeses The Chant. O colectivo formado por Ilpo Paasela (voz), Jussi Hämäläinen (voz, guitarra), Mari Jämbäck (piano e teclados), Kimmo Tukiainen (guitarra), Markus Forsström (baixo), Roope Siven (bateria) e Pekka Loponen (voz, guitarra) lançou em 2008 o primeiro EP, 'Ghostlines' e, desde então, três álbuns: 'This is the world we know' (2010), 'A Healing place' (2012) e 'New Haven' (2014).
É verdade que no EP ouvimos pouco mais que uma banda a experimentar(-se), mas nos dois anos que passaram até ao primeiro álbum, os The Chant parecem ter encontrado um terreno sólido para se expressarem. A capa de 'This is the world we know' talvez explique exactamente aquilo que esse álbum parece representar: um rapaz pendurado numa vedação olha fixamente para um ponto que está fora do campo de visão. Esse encontrar de alguma coisa definida é o que marca a diferença entre 'Ghostlines' e 'This is the world we know'. A música dos The Chant, e particularmente nos seus melhores momentos (Armoured man, November 1983, Will you follow, Safe world, Reflected) tinha uma solidez definitiva, havia nela algo de muito negro e muito pesado, contraposto por uma espécie de aproximação de uma redenção (dizia-se na letra de Will you follow: treasure is the light bearer/ speaking without words to me,/ now is the moment for courage) . Essa solidez não passava ao lado de algumas lições tiradas de bandas como os A Perfect Circle, os Katatonia e da fase 'Alternative 4' – 'Judgement' dos Anathema.
O problema com 'This is the world we know' era no entanto o extremo a que parecia ir, dentro daquilo que era o seu universo. O que era angustiado e sem esperança no primeiro álbum teve então necessidade de efectivamente dar esse passo em direcção à redenção prometida. E é isso que marca o segundo álbum, 'A healing place'. O título é, aliás, auto-explicativo. As canções eram, até certo ponto, mais directas e mais intensas ao encarar uma espécie de mundo doente (Outlines, Riverbed, The black corner), mas que passava também por uma espécie de compreensão profunda desse mesmo mundo. Adoecer e convalescer: eis o que acontecia do primeiro para o segundo álbum dos The Chant. A esperança vinha desse estado em que a doença ainda está presente mas prestes a desaparecer. As composições melódicas e meditativas, que desenvolviam aquilo que no primeiro álbum era mais prototípico, reforçavam precisamente essa ideia. 'A healing place' tinha mesmo alguma coisa de terapêutico e de fascinante, mesmo quando soava mais desesperante (o caso de Outlines sendo o mais extremo de todos).



Com o terceiro álbum, os The Chant parecem ter chegado à possibilidade de sintetizar as duas vertentes que experimentara primeiro em separado. 'New haven', lançado há pouco mais de um mês, é uma espécie de fusão entre o rock pesado e cabisbaixo de 'This is the world we know' e o lado mais experimental e intimista de 'A healing place'. Mas 'New haven' é realmente qualquer coisa nova para os The Chant. É uma conquista talvez daquilo que nos álbuns anteriores era mais embrionário. A concentração num esquema instrumental mais complexo e pausado, com canções longas e imprevisíveis, leva-os num sentido mais sinfónico sem recurso a orquestra que as letras de Ilpo Paasela e Maari Jämback integram de uma forma quase orgânica. Mas mais do que nunca, 'New haven' situa os The Chant no campo do atmospheric rock, com bastante segurança (uma vez que facilmente neste subgénero encontramos propostas que resvalam para o lamechas). O imaginário que sugerem em canções como Drifter, Come to pass, Cloud Symmetry ou Earthen são dificilmente imediatos, pelo contrário, apresentam uma estranheza que nos exige tempo e um certo investimento emotivo para verdadeiramente sermos capazes de os compreender. É também um conjunto de canções (particularmente Earthen, Playwright e Come to pass) um tanto cinematográficas. Há um ambiente muito nórdico e glacial que se cria nos longos solos sem voz. Quando a voz intervém, parece em diálogo consigo mesma. Pergunta-se, responde-se, engana-se e desengana-se. Discretamente, os The Chant criaram uma espécie de pequena tragédia íntima, um progresso pessoal num mundo desviado daquilo que dele se esperava. 


Também influenciados pelo metal e por uma tendência para o atmospheric rock são os belgas Steak Number Eight (SN8), banda originária de Wevelgem, formada por Brent Vanneste (voz, guitarra), Joris Casier (bateria), Jesse Surmont (baixo) e Cis Deman (guitarra), que lançou já os álbuns 'When the candle dies out...' (2008), 'All is chaos' (2011) e o mais recente 'The hutch' (2013).
Desde o primeiro álbum, é notória a intenção de canalizar a brutalidade e a atmosfera apocalíptica do black metal para um registo que ficasse a meio caminho para o rock industrial. As influências dos Mastodon, dos Cult of Luna, dos Dimmu Borgir ou das primeiras experiências de Trent Reznor são assim contrabalançadas por uma melancolia tensa que é herdada da fase de transição dos Anathema ('The Silent Enigma' de 1995, particularmente) ou ainda da influência mais estrutural dos Slayer ou dos Iron Maiden.
No essencial, no entanto, aquilo que os SN8 fazem está distanciado do metal tanto quanto do rock. Esse meio-caminho é o que lhes permite a flexibilidade que caracteriza a sua música: conquanto uniforme, ela oscila frequentemente entre a atmosfera mais pesada e psicadélica e a deriva quase improvisada mais sentimental e comovente. O trabalho dos SN8, e particularmente o seu álbum inicial, dá ênfase efectiva à forma, por assim dizer: as composições são de tal forma exacerbadas que têm qualquer coisa de wagneriano, de profundamente trágico, que poderá passar despercebido devido à tendência para o descontrolo e para a brutalidade. Em canções como The holy truth, Falling out of a dream ou no imponente The sea is dying, esta dimensão trágica e violenta é bastante notória, e ela representa, de resto, aquilo que de melhor existe na música dos SN8.
No entanto, a edição de 'All is chaos' parece ter sido um exercício de radicalização por parte dos SN8. Aquilo que se encontrava diluído e sintetizado em 'When the candle dies out...' surge aqui nitidamente separado. As canções assumem praticamente todas um cariz mais directo e contundente, baseado numa estrutura de repetições e pausas que, apesar de representar uma regressão em comparação ao álbum anterior, não deixa de proporcionar os seus momentos intensos, como acontece com The calling, Blackfall ou Man vs. Man. Ao longo do álbum, no entanto, vão surgindo alguns momentos que, dir-se-ia que intencionalmente, funcionam como interrupções, canções como Trapped, Stargazing ou Track into the sky, que se distinguem claramente das outras por uma aproximação ao lado mais directamente melódico e poético. O que parece acontecer entre os dois álbuns é que, onde o primeiro era extremamente bem sucedido ao diluir duas vertentes quase diametralmente opostas na mesma canção, o segundo se esforça por separar essas vertentes, assumindo-as com morfologias diferentes e com um desequilíbrio propositado: os momentos mais contemplativos acabam sempre por, a dado momento, resvalar para o lado mais violento e apocalíptico. Ainda que 'All is chaos' esteja longe de soar como um projecto falhado (contém, é preciso dizê-lo, algumas das melhores canções que a banda já produziu), é também verdade que ele causa uma certa estranheza ao recuar na síntese perfeita e estranha que 'When the candle dies out...' representava.



Até certo ponto, talvez a própria banda tenha tido consciência disso. 'The Hutch' é o seu trabalho mais complexo e mais conseguido até à data. Há neste terceiro trabalho dos SN8 um lado experimental muito acentuado, que passa também pela inclusão de uma electrónica discreta, e ainda por uma completa liberdade a um nível estrutural. As canções parecem, logo desde a primeira, Cryogenius, não ser propriamente canções, mas peças, com variantes, pormenores e afluentes, que transformam cada faixa num pequeno conjunto de elementos que, somados, resultam numa estranheza muitíssimo conseguida. É um regresso à síntese entre o lado mais barroco e emocional e a componente metal mais do que assumida. A matriz parece, paradoxalmente, vir dos Mastodon e dos Katatonia, ou particularmente dos álbuns mais recentes dos primeiros e dos mais antigos dos segundos. Mas o resultado é denso e pessoal. Mais do que nunca, os SN8 parecem ter ganho uma identidade, um caminho definido. A expressão da raiva e do descontrolo conhece com esta banda uma densidade convincente, que soa muitíssimo madura. Quem esperar uma raivinha adolescente, não vai encontrá-la aqui. Quem grita nestas canções parece ter acumulado durante anos a vontade de o fazer.



Uma proposta também concentrada no potencial emotivo e melódico do rock pesado surge-nos com os suíços Last Leaf Down (LLD). O colectivo formado por Benjamin Schenk (voz e guitarra), Danny Bruno Dorn (baixo), Sascha Jeger (guitarra) e Patrick Hof (bateria) lançou, desde 2012 vários singles: 'Disengage' (2012), 'In dreams' (2012), 'Truth is a liar' (2012), 'Fake lights in the sky' (2013) e 'The thought that I saw you' (2013). O álbum de estreia, 'Fake lights', lançado recentemente, reúne estas e outras canções.
De todas as bandas que este texto refere, os LLD são a que menos trabalho tem apresentado. No entanto, há uma solidez no trabalho que mostram até agora que faz prever um pouco mais do que uma mera promessa. Dizer que, na sua fusão entre rock, metal e a ''escola'' britânica do shoegaze, os LLD são influenciados pelos My Bloody Valentine, por algum do trabalho dos Cocteau Twins e por, principalmente, os Anathema e os Katatonia, será dizer parte da verdade. Conquanto estas influências sejam assumidas e reconhecíveis, há na forma como os LLD interpretam estas influências qualquer coisa que é diferente. Das suas influências, os LLD aprenderam o poder da beleza, a forma de criar atmosferas, a articulação entre o agressivo e o comovente. Mas há neles qualquer coisa de glacial e de etéreo, de quase fantasioso. Mas é uma fantasia até certo ponto distópica. Em todas as canções lançadas desde 2012, há uma angústia densa, uma incursão quase fenomenológica por reinos desencantados. Talvez essa ambiência tenha que ver com o clima de um país do norte da Europa, como a Suíça. Na música dos LLD parece haver neve, tudo nela recria um ambiente solitário, isolado, parado mas profundamente vivo, no sentido em que há uma tristeza vibrante que é sugerida por essas sensações de distância em relação ao mundo.
Esta energia contemplativa e depressiva faz-se sentir com especial intensidade no mais recente The thought that I saw you, uma invulgar canção de amor, cuja letra procura, nos elementos mortos e frios da natureza, uma espécie de transcendência do fiasco amoroso. Esta canção retoma aquilo que acontecia já no inicial Disengage, uma canção um pouco mais áspera, mas que era já eficaz, particularmente pela capacidade de estruturar uma série de momentos díspares (solos de guitarra eléctrica, por exemplo) numa mesma canção que, de uma forma um tanto barroca, parecia ser a assimilação de várias canções.


Em Born dead há até uma certa influência da música medieval (não é difícil recordar Hildegard Von Bingen, outra compositora vinda do frio), que se coaduna de uma forma surpreendentemente perfeita com a atmosfera da música dos LLD.
Outra canção que importa referir é In dreams, eventualmente aquela onde as referências da banda são mais audíveis, mas onde surgem, igualmente, sintetizadas de uma forma mais conseguida. Aqui, parece haver a presença fantasmática de uma sonoridade mais urbana, mas mesmo essa não soa a mais do que uma reminiscência longínqua.
E é isso que faz dos LLD, mesmo antes da publicação do álbum de estreia, um projecto interessante. A sua música parece operar no campo da imagem (e os videoclips simples e quase abstractos remetem-nos para isso mesmo), como se o som tivesse um qualquer poder cinestésico. É nesse sentido que toda a sua música chega a parecer scy-fy, no sentido em que nos coloca na própria aniquilação do mundo construído, e nos conduz a uma espécie de tempo pós-futuro, em que sobra apenas o vazio deixado pela civilização. A memória do mundo construído assombra as composições, mas é sobre o vazio que ficou que elas se debruçam de forma mais concreta. Assim, ficamos perante uma emotividade desfeita, comovida e saudosa mas parca em esperança. A sua beleza resulta de um olhar sobre a morte, o abandono e o fiasco, mitificados e embelezados porque são tudo aquilo que sobrou. A música dos LLD é profundamente imaginativa. O que nela soa familiar parece uma reminiscência do futuro, mais do que uma memória nostálgica. 

(Parte 3: ler aqui

domingo, 1 de março de 2015

Cinco bandas novas (Parte 1)


Quem olhar profundamente para dentro de si mesmo, trará de volta uma canção que vai soar a qualquer coisa como rock.
Apesar de votado a uma espécie de ignorância propositada por parte da ilustre elite dos auto-proclamados intelectuais,  a um nível geral o rock não é senão um dos herdeiros mais directos da música barroca. Na sua estética repetitiva, exacerbada e do explosiva, a música barroca tomava as emoções humanas e trabalhava sobre elas de uma forma sufocante e carnal, erótica e violenta. Ao contrário da música romântica, exaltadora da beleza, a música barroca nem sempre é bela, pode ser tortuosa e inusitada, chega nalguns casos a ser aborrecida (por efeito de repetições e recomeços contínuos): mas em tudo isto mantém uma extrema verosimilhança para com a verdadeira natureza dos sentimentos e da vida. Como o rock, a música barroca é feita de vísceras e agonia.
A influência da música barroca no metal está apesar de tudo acertada: passa ao lado de muitos dos que ouvem, por efeito da forma mais do que do conteúdo, mas está lá. Em muitos aspectos, se resumirmos as características essenciais bandas de rock, encontraremos muito da música barroca: uma tensão pressentida entre o indivíduo e o mundo (que era subreptícia na música barroca e é clara no rock), uma sinceridade desarmante perante os sentimentos (que passava pela música no século XVIII e que se estende muitas vezes à letra no rock) e a busca declarada por aquilo que é dissonante, estranho, perturbante. A sensibilidade barroca, como a do rock, é uma procura do extremo e do excesso, é uma expiação. A ideia de harmonia e regularidade que caracterizava não só a música mas toda a Arte do primeiro neoclássico foi abandonada pela emotividade efusiva dos compositores barrocos. A estética do deslumbramento e da sedução que a Contra-Reforma transmitiu às artes visuais e particularmente à Arquitectura tiveram também reflexo na música. Tendo em conta os valores antropocêntricos e racionais do Renascimento, a atitude barroca é paradoxal: conquanto articulada com o poder religioso, representa uma ruptura cronológica, uma reacção às características estruturantes do Renascimento.
Essa insubmissão, essa busca do diferente e da individualidade, seria retomada em força pelo Romântico em moldes diferentes, mais preocupados com o que era belo e comovente (e deixando de lado a agressividade e a aspereza que se faziam sentir nalgumas composições barrocas). O rock sintentiza estas duas tendências de uma mesma atitude. É romântico pela rebeldia, mas frenético como o Barroco.
Só uma profunda incompreensão (ou, para dizer de uma forma mais clara: uma atitude reacionária e um nadinha ignorante) mantém os ouvintes ''sérios'' e ''cultos'' longe do rock e das suas propostas.

Há, para sermos breves, dois problemas essenciais quando falamos de como o rock é apreciado. Um prende-se com a falta de um trabalho crítico sério*: conquanto isto garanta uma posição de certa forma marginal aos músicos, também resulta numa profunda ignorância quanto ao género ou à cultura. O outro é o da apreciação dos ouvintes, onde convergem uma série de ideologias quanto à sociedade, aos sistemas políticos e económicos e mesmo em relação à própria música e ao cenário desconexo que parece ser o actual.
Ambos os factores não deixam de parecer compreensíveis. A sinceridade e a crueza que caracterizam o rock podem ser, até certo ponto, incompatíveis com um estudo como o que encontramos nas Ciências Humanas (e que contaminam de certa forma o trabalho dos críticos culturais) pois não deixa de ser uma cultura que só pode ser conhecida de dentro e que não pode ser sujeita a determinadas metodologias, sob risco de se perder a ligação com a realidade. Por outro lado, o rock traça a nossa ligação com aquilo que de menos ''civilizado'' temos em nós. O rock, com as suas guitarras eléctricas, com as suas vozes gritadas e a sua sonoridade agressiva (mesmo que melancólica), com a sua expressão descarnada e a sua paixão pelo ruidoso apresenta algo que é diametralmente oposto ao que entendemos como pop. Onde o pop é um glamour e um imaginário sedutor e leve (mesmo nos seus momentos tristes), o rock apresenta-se como uma espécie de glamour decadente, de energia invertida. Onde o pop valoriza a celebração, o rock apresenta a depressão e a violência. Onde o pop marca a luta do indivíduo pela sua afirmação, o rock lamenta a impossibilidade dessa afirmação. Onde o pop é cântico de vitória, o rock é uma elegia da derrota**. Ora, se sabemos que o pop é, por definição, aquele que move milhões de ouvintes, será porque, à partida, esse modelo soa mais aceitável à maioria. Posto isto, não é de todo incompreensível que, quando uma banda vende mais, se torna ''comercial'', os ouvintes originais se sintam defraudados: os músicos que admiravam parecem defender posteriormente valores incompatíveis com os iniciais.
É frequente que os ouvintes de rock se prendam aos grandes clássicos. Esta é uma postura que devemos, no entanto, evitar. O olhar profundo para o interior das coisas não deixa de pressupor uma relação com tempo. Muitas das angústias pessoais que sentimos nascem de uma cisão com aquilo que nos rodeia e que vai mudando de acordo com o tempo em que estamos. Pode ser verdade que nunca mais se fará um álbum como 'Ten' dos Pearl Jam. Mas também já não estamos em 1991. E ainda que muitas das pesquisas estruturais permaneçam as mesmas, é preciso saber continuar.

Aqui ficam alguns (breves) comentários sobre algumas bandas recentes, as seguintes:


Parte 2 (aqui)

The Chant (Finlândia)
Steak Number Eight (Bélgica)
Last Leaf Down (Suíça)

Parte 3 (aqui)

The Black Box Revelation (Bélgica)
Ash is a Robot (Portugal)

Parte 4 (aqui)


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*Refiro-me a trabalho crítico académico, ou mesmo a uma crítica mais ampla levada a cabo em trâmites diferentes dos das revistas especializadas. Basta pensar que nenhum crítico cultural de peso se debruçou com seriedade e profundidade sobre o rock. O exemplo de Susan Sontag é ilustrativo disto mesmo: a crítica que tornou possível falar de cultura popular a par com cultura erudita podia ir a um concerto dos Pearl Jam, mas não sentiria necessidade de escrever sobre eles (vd. https://www.youtube.com/watch?v=7GRx3KgKauY). Camille Paglia incluiu no seu ''Sex, art and american culture'' (1991) um artigo sobre o rock como arte, sério e interessante, mas que peca por ser breve.

** Assinale-se, para ambos os casos, que existem excepções. O pop de Lana Del Rey é dificilmente uma celebração e o rock de algumas bandas mais adolescentes (rock ainda assim) como os Guano Apes ou os Korn não passa necessariamente por um aprofundamento do que é triste ou depressivo.