segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

sobre Luísa Dacosta, no seu 88º aniversário

Há seis anos, eu estava a mudar-me para Lisboa. Vivi o primeiro ano num quarto pequeno ao Bairro Alto, que não tinha grandes vantagens, mas deixava-me próximo pelo menos da Baixa, e das livrarias, que foram sempre um dos meus paraísos. Aos sábados, o que acontece ainda hoje, fazia-se na Rua Anchieta uma feira, com bancas de livros, desde os mais raros (e caros) até outros a preços de ocasião. Foi nesse primeiro ano em Lisboa e nessa feira na Rua Anchieta, que encontrei o primeiro Diário de Luísa Dacosta, a um preço bastante reduzido. Foram essas as duas razões que me levaram a comprá-lo: era barato e era um Diário, um género que aprecio bastante mas que raro é escrito (ou publicado) em Portugal. Conhecia vagamente o nome de Luísa Dacosta, é possível que de alguma antologia, mas não posso estar certo.
Devo ter demorado duas semanas a ler o livro, apesar de ser bastante extenso. Hoje, penso que nada de estranho há nisso. «Na água do tempo», assim se chama esse primeiro de dois Diários, apaixonou-me imediatamente por Luísa Dacosta. Imediatamente e sem retorno. Nos anos seguintes, de alfarrabista em alfarrabista, fui procurando os seus livros, que lia e relia, com a voracidade que só podemos dedicar aos livros em que a palavra vai além de si mesma. Mesmo nesse Diário, impressiona como o fragmento tão pequeno de texto consegue vibrar de forma tão intensa e perpetuar-se, como se lêssemos os pequenos textos de Luísa e eles fossem continuar, sozinhos, quando fechamos o livro e prosseguimos o nosso quotidiano prosaico, o mesmo quotidiano prosaico que, tantas vezes, é mesmo o tema dos textos de Luísa. 


O mesmo se passa com os restantes livros, quase sempre de géneros ditos menores: contos, crónicas, romances fragmentários, novelas curtas. O mundo de Luísa Dacosta não é realista, é real, os seus dramas, estruturalmente guiados pelas grandes tragédias, só são possíveis porque é no real que acontecem, porque cada frase é talhada a partir da matéria tosca do dia-a-dia, do confronto violentíssimo entre uma vida interior desejosa de libertação e de claridade e um lugar onde só florescem a solidão, o isolamento, a tristeza, as saudades de uma infância perdida. É assim com os seus livros sobre as grandes cidades, «Vovó Ana, Bisavó Filomena e eu» (1969) sobre Lisboa, e «Corpo Recusado» (1985) sobre o Porto. Noutro campo estão o inicial «Província» (1955) em que a cidade de Vila Real é palco de uma vida anónima e simples em que o drama encontra saída numa extrema capacidade de contentamento; ou então as crónicas de «A-Ver-o-Mar» (1980) e «Morrer a Ocidente» (1991), em que a vila piscatória de A-Ver-o-Mar, cenário tão análogo à interior Vila Real, se afirma como uma espécie de retorno ao Éden, uma libertação derradeira, um lugar de felicidade idílica que nem por isso está livre da brutalidade e da miséria.
Luísa Dacosta, dir-se-á, é uma ficcionsta. O que não é um demérito, porque muitos dos grandes escritores, por todo o mundo, são ficcionistas. No entanto, desde esse «Na água do tempo» (que inclui, também, algumas pequenas ficções), nunca consegui ver Luísa Dacosta como uma ficcionista. Nalguns momentos, pareceu-me uma arguta etnóloga, observadora e crua, olhando com dureza mas nunca com arrogância, para os pescadores de A-Ver-o-Mar e para as mulheres desses pescadores, ou para as mulheres tão sós de Lisboa no livro de 1969. Noutros momentos, Luísa pareceu-me uma eterna diarista, como não deixou de o ser a grande Irene Lisboa. Noutros momentos ainda, a densidade da experiência humana de que os seus escritos dão conta, fazem Luísa parecer uma espécie de mística laica: nela, a experiência da própria humanidade é uma forma de transcendência, de união com um mundo que pode não ser o melhor, mas é o que existe, pelo que só amando-o é possível sobreviver. A sua escrita é intensa e fulgurante por causa dessa transcendência, e é por isso que em todos os momentos, Luísa Dacosta me pareceu sempre uma poeta. A pequena edição de «A maresia e o sargaço dos dias», que, em 2002, reuniu alguns fragmentos poéticos em livro, não foi mais do que uma confirmação. A poesia era a força que soprava em todos os escritos de Luísa. A sua tendência para o fragmento, para o apontamento, para a imagem bruta e impressiva, não eram senão a intromissão da poesia naquilo que, afinal, somos precipitados ao classificar como prosa.
É raro o autor em que encontramos um mundo tão terrível como o de Luísa Dacosta. Morte, solidão, violência, perda, ausências, sofrimentos atrozes: disto nos dão conta os seus escritos. Ler Luísa Dacosta é conhecer de forma desarmante um mundo em que só é possível sofrer. A escrita parece ser, muitas vezes, uma possibilidade aberta por esse sofrimento: a possibilidade de sonhar. Luísa é uma autora da palavra, da consciência da palavra e do seu poder. De certa forma, continua a pesquisa aberta por Irene Lisboa, Agustina Bessa-Luís, Torga ou José Gomes Ferreira e continuada por Maria Velho da Costa, Regina Guimarães ou Hélia Correia: a fusão de uma linguagem popular com uma linguagem erudita e poética. Luísa é um dos casos em que essa pesquisa se torna mais relevante e mais natural. O espaço aberto pela separação entre estas duas linguagens é perceptível mas insignificante: sempre o texto parece natural, fluido, perfeito. Este apuramento da linguagem escrita é, em Luísa Dacosta, como a planificação de uma viagem, a escolha do itinerário mais agradável: só pelo sonho podemos salvar-nos do sofrimento, e só pela escrita poderemos sonhar. Não admira, então, que a escrita seja cuidadosamente trabalhada, aperfeiçoada. Aperfeiçoada ao ponto em que não é minimizada por marcas de época. Estas, como Adolf Loos tão bem viu, são quase sempre fruto do artifício. Em Luísa Dacosta, nada é artifício, tudo é incrivelmente real e necessário. O tempo não pesará muito sobre ela, o que nos diz será reconhecível por muitos e longos anos. É reconhecível agora, mesmo que nos pareça que tudo mudou tanto nos últimos cinquenta anos.



Uma das fotografias mais conhecidas de Luísa foi tirada pela fotógrafa Graça Sarsfield para a antologia «Vozes e olhares no feminino», publicada pelo Porto 2001: Capital Europeia da Cultura. Luísa sorri abertamente. Tem um riso sincero de menina. Em todas as fotografias que conheço dela tem esse riso de menina. Incluindo naquela que se encontra na contracapa de «Na água do tempo». A pergunta que me fiz, nessa altura, não foi como pode alguém que tem este sorriso escrever estes textos?, mas sim, como pode alguém que escreve estes textos ter este sorriso?
Num regresso ao Porto, em 2010, conheci Luísa Dacosta. O mesmo riso de menina, aberto e bem-disposto. Falou-me da Maria de Maria Vai, Maria Vem, Romance de mulher-a-dias, um conto de 1969. E falou-me de um terceiro Diário que pretendia publicar, o que não chegou a acontecer. Perguntei-lhe qual seria o título, e arrependi-me: poderia ser uma indiscrição. Mas não. Respondeu-me imediatamente que seria «Os dias sem amanhã». E acrescentou: Eu sei que é um título pouco optimista, mas eu acho que não se pode ser optimista neste mundo em que vivemos.
Tinha toda a razão. E tinha toda uma obra que atestava essa crença que partilhávamos. Mas Luísa sorria. Hoje, eu penso que esse sorriso vinha da escrita: de uma escrita de tal forma densa que permitiu a Luísa sonhar, sonhar sempre, mesmo quando sabia que os dias eram sem amanhã.
Emil Cioran, um dos meus filósofos predilectos, tinha a ideia de que só pensamos contra nós mesmos, de que tudo aquilo que fazemos acaba por reverter contra nós, por pesar ainda mais sobre a nossa já imensa miséria. Com Luísa Dacosta, aprende-se a abrir fendas neste ciclo destrutivo que Cioran aponta, e a preencher essas quebras com a matéria luminosa duma palavra que permita ultrapassar a realidade em direcção ao sonho: um sonho que, de resto, não pede o impossível. O sonho de Luísa Dacosta é sempre feito da versão melhor do possível.

Luísa Dacosta deixou-nos na noite de 15 de Fevereiro de 2015, um dia antes do seu 88º aniversário. Morre assim um dos grandes escritores ignorados da literatura portuguesa. Quando um escritor morre, o seu leitor pode sempre ser mais optimista do que aqueles que o conheceram. Conheci Luísa Dacosta, não fomos exactamente amigos, tínhamos uma relação essencialmente epistolar. Hoje, no entanto, escolho ser um leitor, para poder dizer que Luísa Dacosta não nos deixou, que os seus livros continuam na estante, que continuo a relê-los, que continuam a fazer-me interromper a sina terrível descrita por Cioran. E principalmente, que em cada texto, no meio do espectáculo trágico da vida, haverá sempre um frase que tornará possível que se sorria, sem reservas, face a tudo.

1 comentário:

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