quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Suor


Agora choveu.
Não sei onde estou. Conheço este ligar como se de mim falasse, mas não encontro a saída para dentro de mim. Queria muito dar um berro, o um beijo, mas não há ninguém. As lajes deste chão escorregam, as paredes também escorregam, não sei não, acho que este frio me vai derreter.

Corri tanto para chegar aqui. A luz está verde, e vermelha, que nunca vi em inglaterra, nem em frança, nem na holanda onde a torre de utrecht me dizia tudo o que eu não fui... Corri tanto para chegar aqui, eu que já aqui estava, eu que sempre aqui estive, eu que folheio livros de arte à procura de mim quando afinal o espelho basta, estou lá eu, estão lá todos, e é lá que todos são tão diferentes que os posso finalmente roubar, e esconder nos meus livros brancos, mas minhas casinhas brancas, nos dedos brancos dos que morrem nas estrelas amareladas das paredes, e nos pássaros de giz que eu não queria apagar e por isso não apaguei, porque eram o pouco que indica tudo, um pássaro voa mais de fiz, aqui não.

Cheguei a um transporte rápido. Lisboa ensurdeceu-me de soslaio e agora, com o ruído do martelo e do berbequim, já estou viva outra vez. Estes pregos são meus. Foram eles que os pagaram mas são meus. Eu sou fértil. Eu sou fértil. Já pari milhões de crianças às escuras, e os projectores foram parteiros, e o fórceps é que me fode sempre, eu nunca digo palavrões. Estou a suar. Vão saber. Pari, pari, pari e estou a suar. Aqui não gosto de tomar duche. É só um canto seco onde não quero socos. Tirei tudo o que pude, porque preciso de espaço. Não sou dona de mais nada, mas o espaço é sempre meu. Aqui, posso convidar anónimos.

Anónimos? Anónimos? Ah, fazer filhos com anónimos. Aqui, sobre as paredes, no chão: cada vez que aparecêssemos no espelho, seríamos filhos outra vez.

O que eu corri. O outro buzinava, aqui só se ouve o ar condicionado e uma lágrima a secar. Foi aquele anónimo que vinha triste. Eu não sei, não estava cá, contaram-me. Porquê? Querem saber porquê. Ah, mas é bom. É bom o tronco que fala dos troncos e a porta que conduz às portas e eu às vezes estou apaixonada por mim e às vezes fujo e digo que não tenho tempo e às vezes eu minto porque estou comigo e há melhor pessoa?

Pessoa. Neste espaço vazio uma pessoa cheia. Eu.

Manuel Cintra
Alçapão
2009, ed. &etc
imagem: Yona Friedman

Sem comentários: