sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Encontro


Não sou uma metáfora
de silêncio
mas sim a voz do nosso encontro:
o falo
impiedoso
cujo timbre,
como o de todos os mansos,
quase todos os ternos,
me excita
até ao crime.
Talvez esteja aí a tua submissão e o meu
despotismo,
escrita minha!
Não nos censuro.
Pelo contrário, acho que nos completamos.
Belo encontro!
Belo encontro! _ O magnetismo,
a pele, o meu gingar
de marinheiro e caravela masculina
e a tua vulva cega
e discursiva!
Onde aprendi as calças metálicas,
justas nas coxas,
os seios cortantes?
Pois. Num verso. Numa métrica sem rima.
Porquê, então, o espanto?
Todos os poetas são radicais e orgânicos,
sobretudo se interessados
no sexo.
Por isso não te quero obediente,
meiga
e desvitalizada,
tagarela
e insípida,
folheando uma revista inócua
e não te passando sequer pela cabeça o não seres
capaz de tomar uma resolução importante,
tal como a de, por exemplo, mudar uma torneira
ou viajar sozinha em busca
de um harém
suave.
Porque deveria, então, sentir-me
desapontada contigo?
Somos tão parecidos! _ dizes.
Claro: o mesmo arrojo, o mesmo minucioso
cuidado no penetrar
e sem traição
e sem perfídia,
a portuguesa
língua.

Eduarda Chiote
Não me morras
2004, ed. &etc
imagem: Marlene Dumas

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Armas brancas


11
Entre cantares (solitários, do povo)
e discursos exacerbados de políticos
a terra trabalha o seu fermento
lêveda ainda das bocas
colectivas.
Cada semana absorve-te e resolve-se
nas marés vivas dum corpo facetado.
A economia é um pilar estilístico.
Os homens de teatro imitam os tribunos
e as noções de equipamento
estendem-se à arte dos trágicos.
O sexo, dizes, não se determina.
Antes de senso
Visconti declarou
a terra toda que trabalha
treme.
Pasolini foi assassinado pelos seus próprios
mitos.
Não era tempo ainda da mão solidária
figurar entre os ciclones da Roda que desanda
inexoravelmente
sobre o campo dos mártires sem causa.
Virgens de uma razão alucinada
os seus heróis dançavam por entre uma flora
incandescente a meio termo do néon
a um passo da vida pitoresca.
As telas de cinema só se compadecem
com a maquinaria hirsuta e caricatural
dos enormes charutos do academismo
e das cosmopolitas capitais do Falo.
Esse jogo, jogava camuflado.
Nos seus trabalhos diários, a terra
continua a tremer por cima dos seus órfãos.
Proletários do sexo e de todo o mundo
uni-vos.

Armando Silva Carvalho
Armas brancas
1977, ed. Limiar
imagem: James Ensor

sábado, 17 de janeiro de 2015

Sobre o vídeo de "Elastic heart"


Sia Furler, cujo percurso começa no final dos anos 90, e esteve ligada Zero7, só conheceu sucesso a sério depois de participar um tanto inesperadamente nalgumas canções de David Guetta. O álbum mais recente, "1000 forms of fear", longe de ser a sua melhor produção, é sem dúvida o mais badalado, com o primeiro single, Chandelier a tocar irritantemente em tudo o que é bar, café, loja, discoteca, etc.
Elastic Heart, o single mais recente, não é muito melhor, mas apresenta algo decurioso: o videoclip, à volta do qual se criou uma enorme polémica, com direito a acusações de incitamento à pedofilia, o que levou Sia a justificar-se e desculpar-se, o que me parece despropositado, pelo menos na segunda parte.
Não há nada de pedófilo no vídeo de Elastic Heart, realizado pela própria Sia e por Daniel Askill. Pelo contrário. Um acto de pedofilia pressupõe um mínimo de duas pessoas. E, na verdade, este vídeo tem factualmente dois corpos, mas apenas uma pessoa. Trata-se de uma das melhores peças recentes no campo do videoclip e a sua observação deve orientar-se, penso, pelo valor artístico e videográfico, e não pela paranóia excessiva dos nossos tempos tão pós-modernos, em que limpamos com lixívia pura qualquer indício de sexualidade, enquanto nos indignamos porque, durante séculos, a religião reprimiu o sexo. As contradições!
O vídeo de Elastic Heart só é erótico se o olharmos de forma muito desantenta. Pelo contrário, o impulso que anima este vídeo prende-se mais com a violência do que com o erotismo.
Maddie Ziegler e Shia LaBeouf interpretam, no fundo, a mesma personagem, vista apenas de pontos-de-vista diferentes, que não são apenas dois mas, quanto a mim, quatro.
A interpretação mais imediata do vídeo (excluindo a da pedofilia, que não tem sentido algum) é a de que LaBeouf nos apresenta o indivíduo adulto e civilizado, enquanto Ziegler é a criança, ainda livre, em estado quase selvagem. O espaço da gaiola, que se torna uma arena para o confronto entre estes dois lados de um mesmo ser humano, representaria, desse ponto de vista, a consciência do indivíduo ou, indo mais longe, o super-ego freudiano, a voz da punição que força o ego a obedecer a convenções, socializações e comportamentos normativos e que, principalmente, pune a fuga a estes. Vários momentos do vídeo sustentam esta ideia, inclusivamente a capacidade que Maddie Ziegler tem, mas Shia LaBeouf não, de passar entre as grades da gaiola e sair: só uma criança consegue atravessar as barreiras da estruturação imposta a um adulto, porque, nela, o super-ego não está formado, mas em formação. Assim, não é de admirar o contraste nas coreografias de Ryan Heffington. Enquanto a de Ziegler é animalesca e atacante, a dele é uma defesa contida e impotente apesar de pujante.
Mas o confronto pode ser outro. Representar apenas a luta entre a idade adulta e a infância de uma mesma pessoa seria até mais evidente se se procurasse uma semelhança entre os dois intérpretes, mas é exactamente isso que não acontece. O que abre espaço para uma tensão paralela: a do masculino e do feminino. A violência do confronto entre a infância e a idade adulta não é menor do que a violência que ocorre quando nos apercebemos de que a nossa energia sexual e mesmo a nossa os limites do nosso sexo/ género não são necessariamente unilaterais. O que este vídeo nos pode oferecer é um retrato da dificuldade de um homem em assumir o seu lado feminino. Isto torna-se mais pungente quando percebemos que, principalmente na figura de Shia LaBeouf, não há nenhum apontamento de androginia. O seu corpo definido, os pelos corporais, a barba, são emblemas de uma masculinidade que não é ameaçada pela existência de um lado feminino. Portanto, este não devia constituir um problema: mas constitui. Ao ponto de despertar nele a necessidade de reafirmação. Para isto, podemos atentar na sequência em que LaBeouf trepa pelas grades da gaiola e, pendurado no centro, ergue o seu próprio corpo como se fizesse musculação. A câmara muda de ponto de vista e mostra-nos que, abaixo dele, Ziegler dança como se fizesse ballet. Usando dois actos tradicionalmente conotados com o masculino e o feminino, o que Elastic Heart nos propõe é que qualquer insistência sobre um não anulará o outro: intensificá-lo-á. O espaço da gaiola recupera assim a ideia de um super-ego que não esquece as convenções: neste caso, as convenções que pesam sobre ser-se homem na sociedade, por exemplo. No entanto, o final do vídeo apresenta um certo sinal de esperança, quando ele a toma aos ombros e começa a caminhar com ela, mesmo que incapaz de sair dos limites da jaula: dos seus próprios limites, afinal.
Seja na oposição criança/adulto, seja na oposição masculino/feminino, o vídeo de Elastic Heart é uma peça de extrema sensibilidade e de uma beleza simples. Quando se desculpou pelo videoclip, Sia explicou que Shia LaBeouf e Maddie Ziegler lhe haviam parecido os dois actores apropriados para fazer este vídeo. Está correcta. De Ziegler, só conheço os vídeos de Sia, mas Shia LaBeouf, um actor estranhamente monosprezado, tem um particular à-vontade para lidar com a problematização do sexo: isso viu-se no vídeo de Fjögur Píanó dos Sigur Rós, mas mais ainda no prodigioso "Nymphomaniac" de Lars Von Trier. Porque LaBeouf já foi capaz de incorporar a androginia no primeiro e o pior drama sexual masculino (a incapacidade de satisfazer aquela/e que desejamos) no segundo, o actor parece ter uma compreensão fluida e plural da sexualidade, e só alguém assim poderia ter feito este vídeo. No resultado final, a tensão entre os dois corpos (e não duas personagens) é credível e intensa e, o que será mais interessante, consegue multiplicar os seus próprios significados e tornar Elastic Heart uma proposta complexa mas imediatamente cativante, como convém a um videoclip.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A Perfect Circle: The hollow



Letra de Maynard James Keenan e Billy Howerdel
Do álbum "Mer de noms" (2000)

(...)
'Cause it's time to bring the fire down
Bridle all this indiscretion
Long enough to edify
And permanently fill this hollow
(...)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Suor


Agora choveu.
Não sei onde estou. Conheço este ligar como se de mim falasse, mas não encontro a saída para dentro de mim. Queria muito dar um berro, o um beijo, mas não há ninguém. As lajes deste chão escorregam, as paredes também escorregam, não sei não, acho que este frio me vai derreter.

Corri tanto para chegar aqui. A luz está verde, e vermelha, que nunca vi em inglaterra, nem em frança, nem na holanda onde a torre de utrecht me dizia tudo o que eu não fui... Corri tanto para chegar aqui, eu que já aqui estava, eu que sempre aqui estive, eu que folheio livros de arte à procura de mim quando afinal o espelho basta, estou lá eu, estão lá todos, e é lá que todos são tão diferentes que os posso finalmente roubar, e esconder nos meus livros brancos, mas minhas casinhas brancas, nos dedos brancos dos que morrem nas estrelas amareladas das paredes, e nos pássaros de giz que eu não queria apagar e por isso não apaguei, porque eram o pouco que indica tudo, um pássaro voa mais de fiz, aqui não.

Cheguei a um transporte rápido. Lisboa ensurdeceu-me de soslaio e agora, com o ruído do martelo e do berbequim, já estou viva outra vez. Estes pregos são meus. Foram eles que os pagaram mas são meus. Eu sou fértil. Eu sou fértil. Já pari milhões de crianças às escuras, e os projectores foram parteiros, e o fórceps é que me fode sempre, eu nunca digo palavrões. Estou a suar. Vão saber. Pari, pari, pari e estou a suar. Aqui não gosto de tomar duche. É só um canto seco onde não quero socos. Tirei tudo o que pude, porque preciso de espaço. Não sou dona de mais nada, mas o espaço é sempre meu. Aqui, posso convidar anónimos.

Anónimos? Anónimos? Ah, fazer filhos com anónimos. Aqui, sobre as paredes, no chão: cada vez que aparecêssemos no espelho, seríamos filhos outra vez.

O que eu corri. O outro buzinava, aqui só se ouve o ar condicionado e uma lágrima a secar. Foi aquele anónimo que vinha triste. Eu não sei, não estava cá, contaram-me. Porquê? Querem saber porquê. Ah, mas é bom. É bom o tronco que fala dos troncos e a porta que conduz às portas e eu às vezes estou apaixonada por mim e às vezes fujo e digo que não tenho tempo e às vezes eu minto porque estou comigo e há melhor pessoa?

Pessoa. Neste espaço vazio uma pessoa cheia. Eu.

Manuel Cintra
Alçapão
2009, ed. &etc
imagem: Yona Friedman

domingo, 11 de janeiro de 2015

como que se constrói a solidão


como que se constrói a solidão
altissonante e invisível
nos descaminhos da inconsciência
se tranquilo te afogas no sono
não sendo ainda palpável a madrugada
indo a cidade a meio da noite
vazar seus contornos de lixo
seus estertores de vasa e lodo
a cada esquina em cada descampado
_ é cedo um círculo insolúvel de luz
persiste horas adentro
nesta mesma folha de insónia
que tão pérfida se faz silêncio

ah hão-de os meus braços tolher
a vibração dum grito amanhã todos os dias.

Wanda Ramos
Poe-mas-com-sentidos
1986, ed. Ulmeiro
imagem: Archizoom


sábado, 10 de janeiro de 2015

Katatonia: Hypnone


Do álbum "Dead end kings" (2012)
Letra de Jonas Renkse

(...)
No need to take the test
Before the dark must shine
Reflect my eyes
And strip this creation of mine
Tomorrow is so long
The dead end king is here
Black wings upon his back
(...)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015


salmo I (no dia 25 de abril)


a solidão é a única coisa que continuamos a partilhar
a solidão...
tudo mais é procura inútil
nós não procuramos nada
nós somos o panfleto vivo
contra a descoberta

reivindico perante o deus uma culpa que é só minha...

não _ berrou Luciano, o jogral.
depois disto vociferou uma série de monossílabos irrecuperáveis
mas quem acredita na tua bochecha linda
que está no transístor, na capa, na cassete
e na enseada verde onde o sol lambe as águas

Luciano, meu arroto cor-de-rosa,
podes parar os teus guinchos de esquilo.
podes parar.
reivindico perante o deus uma culpa que é só minha
a culpa que não cegou os meus múltiplos olhos azuis
apesar dos eclipses

onde está a tua consciência cósmica?
não ouves pulsar o coração da terra?
e o arfar da erva?
e o vento que mais uma vez te esculpe?

o teu espaço é limitado pela barriga de uma mãe ciosa
que não ousa parir-te

                                    (II)
bonjour, Monsieur Chloroforme
elle a dit d'un air agacé

Regina Guimarães
Ritos de eterna posse
1974, ed. autor
imagem: Emil Nolde

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Tão orgânico tão


Tão orgânico   tão
capazmente morto
este cansaço    lentidão

uma só noite a sobrevoar
todos os tectos   ó quietude!

assumir é do verbo forma
de dizer em quantos braços

sempre os teus
emoldurados de sementes
me renovo     ou talvez

nem sempre    a manhã
se derrame


Helga Moreira
Fogo Suspenso
1980, ed. O Oiro do Dia
imagem: Adriana Molder

sábado, 3 de janeiro de 2015

Memorial temporário #7


Alguns apontamentos, meus, sobre o último livro de José Saramago, que podem ler aqui.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015