sábado, 15 de novembro de 2014

Dois poemas de Eduarda Chiote



Altas voam pombas (fragmento)

Todavia, penso que nada tem de temerário a ponte inscrita em corporal silêncio. As horas são uma galáxia branca; enevoada. Participamos da rotação do tempo. Estamos perante o mistério: o insondável.

Nesta evanescência, tudo pode não acontecer. Desventrar, do quotidiano, o rumor: despenharmo-nos pelos passos, a ratoeira do passeio onde negras pombas de luto na calçada agonizam; nada pode comparar-se a esta pegada no infinito.

Estamos no limiar do encontro. O numinoso. O secreto e o segredo. Cúmplices. Espectantes e frágeis. Nus. E violentamente vivos. Que nenhuma fábula pode comparar-se à migração da escrita. Nela, o silêncio é grande medalhão de vidro.

Altas voam pombas
1983, ed. &etc


Fiat Lux 9

A generosidade é má conselheira e péssima
economista. Jesus encarava tanto os filósofos da felicidade
quanto os desencantados eruditos
com muita reserva: uma vez que nem uns nem outros
tinham previsto, no Seu inflacionar os peixes,
ser, da natureza dos peixes, «o devorarem-se uns aos outros».
Tal como da natureza dos vírus o reproduzirem-se
e da natureza da dívida termos estado sempre em dívida
e até mesmo para com a dívida.
E da natureza do homem crescer e multiplicar-se: e da natureza
do bobo o riso, e da natureza do outro, o assombro
do facto _ farto de psicologias, dizes, quero factos.
Curioso, pois, ter sido O que nada entendia
de redução da carga tributária, precisamente quem apelou
para o não pagamento dos impostos, pelo que o modelo de um
paedocypris capaz de engolir
um tubarão ou o inverso,
não importa.
_Queres, então, fazer sexo comigo, tu? Tão disléxico
que nem sequer consegues arrastar-te pelo sono
desfeito das areias _ diria das palavras _ quanto mais por mares
desempregados
e lassas redes móveis?
Deixa para lá! Não te preocupes, que nunca
houve pandemia sem morte.

Fiat Lux
in "DiVersos - Poesia e tradução"
nº20, ed. Sempre em pé, Junho de 2014

imagem: Archigram