terça-feira, 26 de novembro de 2013

Lenga-lenga


Maio, maio.
Tarde.
Vejo-me na rua.
Penso? muito pouco.
Terra escura, terra escura!
E soledade...
Pena?
De nada, de mim.
Mas desespero, fastio.
 
Soledade!
Terra escura.
Maio, maio...
 
Camions de presos,
numa rua parados.
Vazios, cheios?
Impenetráveis.
Vazias as ruas.
E as vistas...
Gastas, imutáveis!
Um rio antigo,
de aquário,
longe, estagnado.
As casas maciças,
impávidas, alinhadas.
 
Descidas, só descidas...
As mulheres, adamadas.
E eu só, só, só!
Sempre assim.
Tudo o mesmo,
o que foi.
Soledade, soledade...
 
As ruas com sêlo.
Características e incaracterísticas.
Quentes e escuras.
E eu hei-de morrer,
acabar de passar,
deixá-las.
E elas, ficar!
Sem nenhum mistério.
Corro nelas, como o seu sangue,
surdo, cego, interior.
Um sangue sem qualidade!
Desconsolado.
 
Há vida?
Não há, não a sinto.
Mas o mundo revolve-se.
Mundo de insectos!
Vai aqui uma alma,
como o sangue das ruas,
perdida,
desemparelhada,
para o nada...
 
As ruas, golfos!
De um lado e outro a vida,
mas dissimulada, aberrativa.
E eu que sou o seu sangue,
correndo,
sem olhos nem sentidos....
Afrontada,
apertada, desenganada.
 
A de sempre aqui vai,
a sem coragem!
Maio, maio...
Uma tarde como estas,
tão velha e tão simples,
me ofende e me angustia.
 
Miseráveis, miseráveis!
Tomais a vida vossa

e não me deixais nada!
Sem vos ver, pressinto-vos...
 
Estas ruas, estes golfos,
que sempre me amarguraram...
me invadiram de melancolia,
tão cara!
 
Humilde, hei-de morrer
e elas continuar...
a receber e a desprezar...
Hei-de passar
sem reconhecer a vida,
a esquiva,
toda a sua acuidade!
De nada me desobrigarei,
não trouxe mensagens...
Vadio.
 
Passarei como o sangue,
indiferente, inconsciente,
repetida e esquecida.
Passarei.
 
Mundo de cães,
mesquinho e utilitário,
como me olhaste?
Nem me olhaste,
tudo me roubaste,
de tudo me desenganaste.
Insípido, insípido.

Irene Lisboa
in «Seara Nova»
Junho de 1938
pintura de Jeremy Enecio

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Coisas minhas III


ANTES DE PARTIR


Sob o último céu que vejo daqui
espero  as luzes da rua.
As casas enterram-se no chão
até serem uma mancha na retina.

Estou preso à estrada,
a fundir-me no alcatrão.

Aprendi o nome das ruas, fixei
algumas árvores,
deixei-me pertencer a este lugar,
adiei a partida.

Nesta última noite chove, ainda
é verão. Parece-me que estou menos só,
como se a noite reagisse à tristeza
e chorasse também.

No meu choro tento memorizar
certos detalhes, uma cor, um resto
de tinta a descascar na parede. Mas é inútil.
Devia pensar que partir será
chegar a outro sítio. Mas a ausência
e a última visão da minha

casa dá lugar só às trevas.

[João Borges: Porto, Julho 2009]
imagem de Helena Almeida

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O que aponto



1
Conversa muda...
A falada cessou, cessara.
Começou a muda, encadeada, sem presenças, solitá-
ria, gostosa, inteligente, reminiscente, recriada.
Ai, as mãos...
O pensamento, ou aquilo que durante os silêncios
connosco fala, evocava as mãos, regalava-se de não sei
que especiosos contactos!
Os que pouco antes se tinham falado, entendidos e
afectuosos, cautelosos...
Falariam, falavam... Mas o que deles mais deli-
cado e mais secreto falava eram as mãos... ligeiras,
tocando-se invisivelmente, buscando-se.
E ainda agora elas falavam, se tornavam lembra-
das! Carnais e etéreas. Irreais e ligadas!

Pois sim.
Mas não será o meu pensamento que tudo materia-
liza, ou inventa?
Impulsos, movimentos, transposições...
Que prolonga as ínfimas sensações, tais, que um
entendimento brusco e claro anularia?
Pensamento! Que necessidades as tuas, e que pra-
zeres! Reanimares e dares extensão a um quasi nada,
aparente...


2
Subtil, como um papel, uma pena, uma folhita de
árvore, um trapo, eu seja, ou fosse!
E não o sou?
Serena, prudente, desconfiada...
Sou.
Só a minha agastada, descolorida serenidade não
tem, não pode ter, nunca terá aquela mansidão, aquele
ar leve, indiferente, descansado, aquele poisar da doce
pena...
A minha serenidade é... e cada vez mais, daqui
para o resto, para o meu sempre, uma serenidade de
decadência.


3
Belo homem, arisco, violento!
A fala seca, imodulada; o olhar claro; e uma agi-
tação, uma irregularidade, uma leonia!
Animal de presa.
Mas eu, a minha imaginação ou o meu corpo, eu,
tão fria!
Pessoa que nada ufana, nada agita, nem sequer
quebranta...
Mas isto percebendo, sofro, dá-me dor!
Espírito... trabalhas sempre, e talvez te contentes,
te iludas como um delicado.
Pobre! Mesquinho! Impotente!
Relojoeiro, que te distrais e te ocupas com o isocro-
nismo e a finura das rosas, agulhas, pinças, lentes...


4
Pela orla marítima tranquila, tranquila, os namo-
rados, passageiros, despreocupados, de mãos dadas, ou
passadas pelas cintas, pelos ombros, chegados...
Os namorados, tão jovens! renovam não sei que
mitos.
Pela areia húmida, para o sul, para o norte...
Elas, tão finas e castas!
Tantas perspectivas...

Tarde amável, mas indistinta, do acaso, tirada sem
propósitos do calendário.
Velha... É velha a terra, a areia, tudo isto. Mais
eu!
Novos, e espirituais, só os namorados.


5
Eu cantava, havia de cantar...
Mas com que voz?
Falta-me a voz, e os temas.

Eu havia de cantar briosamente (se tivesse voz), o
amor!
Nunca um amor apoetado e correntio...
O amor! O êxtase, o arrebatamento! Ou talvez só
a ternura.

Sons de música...
É a telefonia das minhas vizinhas, das meninas boni-
tas.
São realmente bonitas.
Pois assim, ao som de uma valsa lânguida, de uma
valsa velha e excitante, eu havia de cantar, glosar, as
fantasias, os sonhos de dois jovens pré-amantes.

Havia de cantar?
Não!
Chorar, chorar!
O meu desejo verdadeiro é de chorar, por querer
cantar sem poder.

Irene Lisboa
in «Presença» nº 50
desenho de Robbert Van Wynendaele

domingo, 10 de novembro de 2013

Je voudrais pas crever

 
Je voudrais pas crever
Avant d'avoir connu
Les chiens noirs du Mexique
Qui dorment sans rêver
Les singes à cul nu
Dévoreurs de tropiques
Les araignées d'argent
Au nid truffé de bulles
Je voudrais pas crever
Sans savoir si la lune
Sous son faux air de thune
A un coté pointu
Si le soleil est froid
Si les quatre saisons
Ne sont vraiment que quatre
Sans avoir essayé
De porter une robe
Sur les grands boulevards
Sans avoir regardé
Dans un regard d'égout
Sans avoir mis mon zobe
Dans des coinstots bizarres
Je voudrais pas finir
Sans connaître la lèpre
Ou les sept maladies
Qu'on attrape là-bas
Le bon ni le mauvais
Ne me feraient de peine
Si si si je savais
Que j'en aurai l'étrenne
Et il y a z aussi
Tout ce que je connais
Tout ce que j'apprécie
Que je sais qui me plaît
Le fond vert de la mer
Où valsent les brins d'algues
Sur le sable ondulé
L'herbe grillée de juin
La terre qui craquelle
L'odeur des conifères
Et les baisers de celle
Que ceci que cela
La belle que voilà
Mon Ourson, l'Ursula
Je voudrais pas crever
Avant d'avoir usé
Sa bouche avec ma bouche
Son corps avec mes mains
Le reste avec mes yeux
J'en dis pas plus faut bien
Rester révérencieux
Je voudrais pas mourir
Sans qu'on ait inventé
Les roses éternelles
La journée de deux heures
La mer à la montagne
La montagne à la mer
La fin de la douleur
Les journaux en couleur
Tous les enfants contents
Et tant de trucs encore
Qui dorment dans les crânes
Des géniaux ingénieurs
Des jardiniers joviaux
Des soucieux socialistes
Des urbains urbanistes
Et des pensifs penseurs
Tant de choses à voir
A voir et à z-entendre
Tant de temps à attendre
A chercher dans le noir
 
Et moi je vois la fin
Qui grouille et qui s'amène
Avec sa gueule moche
Et qui m'ouvre ses bras
De grenouille bancroche
 
Je voudrais pas crever
Non monsieur non madame
Avant d'avoir tâté
Le goût qui me tourmente
Le goût qu'est le plus fort
Je voudrais pas crever
Avant d'avoir goûté
La saveur de la mort...
 
Boris Vian
Je voudrais pas crever
1962, ed. Jean-Jacques Pauvert
fotografia de Francesca Woodman
 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

o gafanhoto andrajoso

De certo ponto de vista, a pintura sofreu, desde os Egípcios e os Greco-Romanos, várias evoluções mas poucas revoluções. Quando a obra de Giotto experimenta nervosamente a perspectiva, sabemos que uma revolução se avizinha mas, ainda antes do Renascimento, essa evolução seria concretizada não por italianos, mas pelo grupo de pintores ligados à chamada Escola de Brugge que hoje conhecemos como Primitivos Flamengos. Para estes pintores, o domínio da perspectiva foi pouco mais que um instrumento técnico para algo bem mais revolucionário, que foi a substituição do realismo pelo real. Mesmo nos frequentes temas religiosos, os trabalhos de Robert Campin/ Mestre de Flémalle, de Rogier Van Der Weyden ou de Jan Van Eyck, inauguram um senso do real, um elogio do quotidiano que mantém a mística em quadros pouco distanciados da realidade do dia-a-dia. Particulamente Jan Van Eyck, com o seu genial 'Casamento dos Arnolfini', virou costas à mitificação e trouxe a atenção sobre a dignidade e a complexidade do quotidiano.
Mas noutros trabalhos, aparentemente mais circunspectos, o pensamento de Van Eyck não se revela menos inovador. Os retratos individuais que fez apresentam-se-nos segundo uma tradição burguesa, mostram-nos pessoas que ora sabemos ora não sabemos quem são, mas que invariavelmente nos são mostradas como pessoas distintas. A partir dessa aparência, Van Eyck sabe manipular elementos e símbolos para uma compreensão do estatuto e ocupação da pessoa, por exemplo. O retrato individual de Giovanni di Nicolao Arnolfini mostra-nos precisamente isso _o traje escuro denuncia o homem abastado por exemplo (uma vez que só os muito ricos conseguiam pagar o dispendioso tecido escuro). Os fundos negros são diferentes daqueles que se popularizariam no Renascimento, em que o retratado surgia em frente de uma paisagem que aludia ao seu poder sobre determinado espaço. Nos retratos de Van Eyck os retratados dispensam a paisagem: têm o poder por si mesmos.
No entanto, os retratos individuais mais interessantes de Van Eyck terá pintado não chegaram aos dias de hoje. Os polémicos retratos de Isabel de Portugal ocupam um lugar especial no conjunto da obra de Van Eyck. Mais do que serem encomendas, eram uma missão diplomática.
Mudando-se de Lille (actualmente pertencente a França) para Brugge, Van Eyck passa a trabalhar para o corte de Filipe III, Duque de Borgonha, do Brabante e dos Países Baixos Borgonheses. O Duque preparava para o ano de 1428 as suas terceiras núpcias, com Isabel de Portugal, filha de D. João I. A viagem de Van Eyck a Lisboa teve portanto esse propósito _o de retratar Isabel, para que Filipe III pudesse ter uma ideia do aspecto físico da sua pretendente.
Seis séculos depois, restam-nos trabalhos de outros pintores, copiados ou pelo menos baseados nos originais de Van Eyck. Nos três, Isabel surge como uma mulher elegante, bem vestida, evidenciando luxo e requinte. Mas nos três, o que vemos é um rosto demasiado alto, um nariz desproporcionalmente protuberante, uns olhos pequenos de olhar conspícuo e um queixo aguçado que evidencia demasiado a boca.
 
 
 
Particularmente o retrato em que a infanta surge de três quartos (e de que temos apenas uma cópia feita na oficina de Van Der Weyden) denuncia uma espécie de sobrecompensação. Isabel parece uma espécie de gafanhoto andrajoso, a beleza diáfana das suas vestes, o brilho rigoroso dos véus parecem tentar compensar o seu rosto que tem algo de insecto. De um insecto sereno de sorriso contido que, apesar de tudo, indica uma mulher escorreita e submissa que conviria àquele início do século XV num casamento entre nobres. O mesmo acontece com o retrato em que Isabel surge quase de perfil (existente apenas uma cópia do século XV), plasticamente menos conseguido, mas igualmente rigoroso em mostrar as características físicas da infanta.


Num outro retrato (de que temos uma cópia coeva), metade de um díptico que, do outro lado, apresenta Filipe III, Isabel parece mais jovem e sorridente, mais virginal quase. Não tem o ar adulto e maduro dos retratos que a mostram até à cintura, mas continua envolvida numa série de véus luxuosos e minuciosamente decorados que, tapando-lhe o cabelo, também afogam o seu rosto numa profusão de ornamentos e decorações que a defendem não de parecer feia, mas de parecer apenas feia.
Não é de assumir que a forma verista como Van Eyck pinta Isabel a tenha prejudicado. Filipe III casaria efectivamente com ela, dando até origem à Ordem do Tosão de Ouro, para assinalar a união entre as duas cortes.
Passada a missão diplomática, fica acima de tudo o significado daqueles retratos. Se Jan Van Eyck e aqueles que reproduziram os seus retratos, foram rigorosos na representação do real, sabemo-lo graças aos retratos de Isabel. Seria de esperar que, naquela missão diplomática, para viabilizar um casamento entre dois desconhecidos, Jan tivesse embelezado a infanta, que tivesse disfarçado os seus defeitos. Mas o pintor não fez isto. Ele mostra uma Isabel digna e elegante, mas não ignora a realidade: o seu rosto tem delicadeza mas é tosco e desproporcional. Ela tem outras qualidades, de gosto, por exemplo, é certamente de uma corte abastada, mas a beleza física natural não a contemplou.
Van Eyck não abdica do real, não o força, ainda que o teatralize. E essa foi a verdadeira revolução que representam os Primitivos Flamengos. O domínio da perspectiva que Giotto inicia em Itália não tem grande interesse por si só. O grande interesse da perspectiva é que a saída do bidimensional para o tridimensional prevê uma maior aproximação ao real. E essa aproximação dá-se na Flandres muito mais do que em Itália, concretiza-se esplendidamente no trabalho de Van Eyck, mais do que noutro qualquer.
A prova disso está nos retratos de Isabel de Portugal, que recusam manipular a verdade, preferem o gafanhoto andrajoso que Filipe haveria de conhecer à princesa endeusada que nunca existiu.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Jeito de escrever


Não sei o que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.
Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei o que diga, não sei o que pense.
Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?
Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!
Com este longo aparo, bonitas letras e o gesto _o jeito.
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago...
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas.
Mortas!
E por mais não ter que relatar me cerro.
Expressão antiga, epistolar: me cerro.
Tão grato é o velho, inopinado e novo.
Me cerro!
Assim:
uma das mãos no papel, dedos fincados, solta a outra, de pena expectante...
Uma que agarra, a outra que espera...
Ó ilusão!
Me cerro.
E tudo acabou, acaba.
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?
Silêncio.
Nem pássaros já, noite morta.
Me cerro.
Ó minha derradeira composição! do não, do nem, do nada, da ausência e solidão.
Da indiferença.
Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada.
Noite vasta e contínua, caminha, caminha.
Alonga-te.
A ribeira acordou.

Estrela, 1950

Irene Lisboa
Vértice nº 109,
Setembro de 1952
pintura de Miguel Leal