domingo, 15 de abril de 2012

Florbela de Vicente Alves do Ó

AS MÁSCARAS DO DESTINO

Uma personalidade como a de Florbela Espanca talvez nunca chegue a ser plenamente compreendida. A força dos seus poemas e de muitas de outras páginas que nos deixou denotam muitos traços dessa personalidade que podia ser narcísica, neurótica, insatisfeita, isolada ou mal-entendida ou tudo isto ou nada disto.
Natália Correia, Jorge de Sena, José Régio, Agustina Bessa-Luís, Yvette K. Centeno, Hélia Correia ou Rui Guedes são algumas pessoas que trabalharam, de variadas formas, a figura de Florbela. Destes, Hélia Correia trabalha-a criativamente, reinventando Florbela numa peça de teatro do mesmo nome. Vicente Alves do Ó junta-se a este grupo, e fá-lo, pela primeira vez, no cinema.


O filme, 'Florbela', apresenta-nos Florbela Espanca (Dalila Carmo) na sua separação de António Guimarães (José Neves), e no início do casamento com o terceiro e último marido, Mário Lage (Albano Jerónimo). Apesar de inicialmente Florbela parecer convicta da sua vontade de estar com Mário, a vida na cidade de Matosinhos surge-lhe de certa forma desinteressante e nela, a escritora sente-se algo desenquadrada. A frieza que depressa surge entre ela e o marido acentua-se quando recebe uma carta do irmão, Apeles (Ivo Canelas), com quem vai ter a Lisboa.
O essencial do filme decorre precisamente na cidade de Lisboa, e vive essencialmente da relação que existe entre Mário, Florbela e Apeles, estando ela no centro. Vicente Alves do Ó foi pródigo em demonstrar a personalidade instável e algo dividida de Florbela, bem como a sua firmeza que parece abrir portas a uma certa irreverência. Ao mesmo tempo, ver o filme com atenção também nos aponta para aquilo que nele é central: a relação entre Florbela e Apeles, onde uma certa tensão sexual não consumada dá origem a um contacto intenso mas, ao mesmo tempo, nunca plenamente vivido. A maioria do filme é feito de cenas curtas, onde o que ressalta é sempre alguma frase contundente que nos dá mais um dado sobre a figura de Florbela, ao passo que são mais longas as cenas em que Florbela está com Apeles. Nestes momentos precisamente temos acesso à relação difícil de Florbela com a escrita, com a família, e até com a sociedade que a rotula imediatamente por causa dos três casamentos. Um dos momentos fulcrais será a morte de Apeles, num acidente de avião, que acentua a instabilidade da escritora, conduzindo-a a uma espécie de esgotamento, cujas sequelas depressivas só terminarão com o suicídio, que não aparece já no filme.
A morte de Apeles parece também potenciar quer a frieza entre Florbela e Mário, quer o sentimento de desencaixe que nela se vai fazendo sentir.
O que acontece é que a personalidade de Florbela é realmente demasiado complexa para ser mostrada num filme com cerca de uma hora e meia. Consciente disso, Vicente Alves do Ó acaba por centrar-se num aspecto específico (A tal relação entre os dois irmãos.), seguindo um pouco aquilo que, no essencial, é o livro de contos 'As Máscaras do Destino' (1931), o que, aliás, fica claro quando, na sequência final, Florbela lê um excerto da Dedicatória deste mesmo livro. No que toca à relação entre Apeles e Florbela, o filme está muito conseguido. Os momentos em que estão juntos são plenos de vida, mas também de regressos à infância e de um debruçar sobre a vida de Florbela, o que tanto acontece através de uma exaltação, como através de momentos muito dramáticos, como o que dá origem ao aborto espontâneo de Florbela. E há que isolar a cena em que Apeles, encostado a uma parede, ouve Florbela fazer sexo com Mário, enquanto se masturba, chorando. Esta cena, em poucos minutos, consegue transmitir todos os sentimentos que decorrem entre os dois irmãos, que passam pela atracção, pelo amor mais profundo, e pelo sentimento de culpa. E o mesmo se diga da cena em que, numa festa, Florbela veste uma capa dourada, indo depois mostrá-la ao irmão. Ao irmão, não ao marido, que também estava presente. Aliás, aspectos destes apontam-nos uma coisa que também interessa apontar a 'Florbela': é que a apurada sensibilidade do realizador para os cenários, os pormenores, e também para a direcção de actores, acaba por dispensar, de certa forma o diálogo. O filme depende pouco dos diálogos, salvo nalguns momentos, e assim toda a intensidade acontece dentro dum certo silêncio, exactamente como o amor de Florbela e Apeles.
O que, a meu ver, fica a falhar neste filme, é o debruçar sobre certos aspectos bastante importantes da vida de Florbela, como sejam a Faculdade de Direito, o 'Livro de Soror Saudade' (1923), que existia já nesta altura da vida da escritora, e até alguns aspectos (Não todos.) da sua relação com o meio literário da altura.
Aqui, quem conhecer a biografia de Florbela, ficará a sentir um certo distanciamento por parte do filme.


Se ignorarmos essa biografia, o que, aliás, não será errado, veremos que 'Florbela' consegue, de vários pontos de vista, entregar-nos a personalidade de Florbela, sonhadora, intensa, mas também neurótica e incompreendida, bem como dar-nos vislumbres muito interessantes do tempo em que ela viveu. Vicente Alves do Ó não descura os cenários, as roupas, toda a produção estética do filme, aliás, é minuciosa e quase sempre rigorosa. Dalila Carmo está muito bem como Florbela, e a intensidade que incarna com toda a naturalidade só nos relembra o quanto a actriz está mal aproveitada no panorama português. Ivo Canelas também não está mal como Apeles. A Albano Jerónimo coube um papel um tanto ingrato, uma vez que a frieza que caracteriza o seu casamento com Florbela o condena a um certo apagamento que, mesmo assim, ao ser interrompido, nos convence facilmente.
No fundo, este filme consegue perfeitamente dar-nos a atmosfera que Florbela nos dá, talvez não em toda a sua obra, mas pelo menos em 'As Máscaras do Destino', o livro cuja sombra parece ser mais decisiva neste filme. Entre esse livro que era o livro de um morto, e a história d' a que no mundo anda perdida, este filme acaba por ter uma palavra a dizer sobre determinada parte da vida de Florbela.

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