quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A Violação de Lucrécia



Há muito que as flores ficaram esquecidas. Sentimos chegar de novo o seu odor
que existe apenas junto das nossas mãos. Esperamos assim a noite. Poderiam
nascer no interior de qualquer sala as mesmas sombras, o que para ti era
semelhante ao leve rumor de quaisquer passos que vinham atravessar um caminho
que a ninguém pertencia. «Fiquei mais envelhecida; quantos instantes
passaram, como se fosse a água que desde sobre o peito ao despertarmos, -tranquilo
sinal que nos fica do amor. Talvez seja o seu brilho que vem ao nosso encontro, sereno
como a resposta do sangue; era só um murmúrio que se aproxima devagar, ao esperarmos
o mesmo voo que nos procura inutilmente.» Que outras palavras
aqui ficaram repetidas? As aves afastaram-se, elas que tinham apenas
a forma das nossas pálpebras. Tornara-se mais leve o sofrimento, e sobre cada rosto
distingue-se o que talvez fosse uma nova carícia: alguém havia de trazer consigo a luz
necessária, a que ilumina os corpos. «Fecha os teus olhos», disse. «Assim principia
a afastar-se de nós um gesto quase inútil. Entregaste-me esse movimento destinado
a ser uma promessa que vinha para nos magoar; por isso, me venceste.» Nada mais te 
                                                                                                        [queria dizer;
tranquila era esta maneira de olhar na curva de qualquer caminho não para
alguém, mas apenas o lugar onde já não estávamos. Existe a ternura como se fosse
ainda um aceno; era o que recordavas só para que de novo nos pertencesse.
Compreendemos que muitas coisas ficaram esquecidas no interior dos nossos olhos
e foi em sua direcção que caminhaste. «Um amor como o meu é demasiado grande
para que o possas perdoar. Mas o que te venho dizer é simples; espero há muito
que adormeças, como se dentro de ti se perdesse agora a minha voz. O sono
traz consigo um pouco da nossa morta, e a dor há-de existir como se víssemos as margens
do mesmo rio.» Tudo tem um fim; porque começava nele a tua pureza?

Fernando Guimarães
Tratado da Harmonia
1988, ed. Justiça e Paz
pintura de Dante Gabriel Rossetti

Sem comentários: