sábado, 30 de abril de 2011



Escassez (2)

Neste chão não dormimos e a
noite acelera-nos a vida tu
encostas ao incêndio
um fogo diferente

E nesta noite tanto como
na madrugada negra e clara fonte
no incêndio do chão desamparada
da amargura faz

o que diz quem
neste chão desta aridez dormiu de
dor e amparada esperança

um fogo tão diverso que dormimos
ao incêndio encostados
e vivos


Gastão Cruz

Escassez

1967, ed. autor

desenho de Rogério Ribeiro



Com Unhas e Dentes

Estar vivo
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
e sabor amargo da casca,
de tão doce,
não o esqueces.




Luís Filipe Parrado

in "Criatura", nº5

Outubro de 2010


pintura de Frank Auerbach

Agustina Bessa-Luís: O Concerto dos Flamengos

OUVIR VOZES



Editado em 1994, "O Concerto dos Flamengos" é, a meu ver, um dos romances mais modernos e mais excepcionais de Agustina Bessa-Luís. As leituras que pode ter são inúmeras, desdobrando-se no plano romanesco, no plano histórico e, como sempre, no plano analítico e político, ainda que a escrita, subtil e nítida, nos possa enganar a pensar que se trata de um romance mais simples do que, na verdade, é.




Na linha da frente, encontramos três mulheres residentes em Lisboa, deslocadas aos Açores para assistir ao Concerto dos Flamengos, um evento anual que dura vários dias. Estas três mulheres são Luísa Baena, a sua prima Maria Vicente e a criada, Serpa.

Delas todas, a mais destacada será Luísa Baena e será através dela também que a história do Concerto dos Flamengos se cruza com a História de algumas figuras como Carlos o Temerário, Maximiliano e Isabel de Borgonha. O que cada um destes personagens representa são aspectos relacionados com o poder e com a ocupação geográfica, que, evidente, afectará também toda uma área cultural que aqui está também em análise.

Luísa parece mais interessada em ouvir, em "dialogar" com as suas figuras históricas do que propriamente em ouvir o Concerto. No entanto, a sua presença no evento é, também ela, sintomática de alguma coisa: porque, acima de tudo, o Concerto dos Flamengos parece ser símbolo de uma Europa culturalmente fracturada, incapaz de compreender a importância das mudanças do tempo que, em último caso, dependem directamente das mudanças de poder. A presença dos flamengos no século XVI nos Açores deixou muitas marcas, a maioria das quais nunca verdadeiramente chegou a ser apagada, convivendo confusamente com o tempo real do romance, que é a transição dos anos 80 para os anos 90.

Assim sendo, Luísa apresenta as suas reações ao espectáculo, sendo particularmente rígida para com o ragtime, em que o músico japonês toca Gershwin de uma maneira personalizada. É de notar que essa interpretação que, para Luísa, é também uma deturpação é tocada por um músico cujo nome nem sequer sabemos, sendo apenas referido como "o japonês do ragtime".

Luísa tem, mesmo assim, vários motivos para tentar entender as relações entre cultura e poder, motivos acima de tudo pessoais, que remontam à sua infância em Nevogilde Park, no Porto, onde ela já apresentava dificuldades em lidar com o poder, neste caso exercido pela mãe e pelo avô Baena. É assim que, aos 18 anos, Luísa tem uma tentativa falhada de fugir do país com um marinheiro, acabando por, depois, ir para Itália estudar canto lírico, carreira que, também ela, é falhada. Assim, ela acaba por se casar com Xavier, descendente da família dos Jornada Branca, que tem várias ligações com a resistência ao regime, acabando por arrastar para essa luta Luísa, apesar do casamento conturbado que têm e que acaba em divórcio. No fundo, toda a vida de Luísa é baseada em confrontar-se com questões básicas como a sociedade, o poder, os códigos de comportamento, as éticas e as relações humanas. Será por isso que ela dá mais atenção aos fantasmas históricos dos Açores, que lhe permitem prosseguir nas mesmas questões, do que ao espectáculo pobre do Concerto.

Apesar de Luísa nos surgir como uma mulher "extraordinária demais para ser sincera" (p.130), também a vemos como uma espécie de heroína falhada, um tanto incompetente e incapaz de conseguir alguma coisa na vida. Acima de tudo, ela parece ter um sistema de referências culturais e políticas bastante abrangente, e é uma boa ouvinte: ouvinte da História e dos sistemas sociais.

É por isso que, nas suas divagações, ela tem visões do Cortejo de Maximiliano, que parece ser o foco da sua atenção, muito mais que o Concerto dos Flamengos. Talvez porque ela tem consciência de que esse espectáculo confirma uma cultura que não soube relacionar-se com o poder e com a História de maneira a sobreviver plenamente. Os músicos são ora difíceis de entender, ora verdadeiramente decadentes e de qualidade questionável.

Com o público passa-se a mesma coisa. A música é-nos descrita por Agustina como uma catarse de problemas de violência e de erotismo; e o público parece completamente inconsciente de questões artísticas, estando as pessoas presentes mais por pretensão do que por interesse cultural.

Outro elemento que nos evidencia este desfasamento é o comportamento da criada Serpa, cuja lealdade se prova através da maldade e de uma série de códigos de comportamento que, aparentemente, já ninguém segue.






Por fim, temos ainda a surpresa da chegada de dois personagens: Herberto, amigo de Luísa; e Clara Bulcão, uma velha rival da protagonista, que inclusivamente estivera envolvida com Xavier, depois do divórcio dele e de Luísa.

A Bulcão é-nos mostrada como "uma proxeneta com talento" (p.146). Esse talento é, acima de tudo, um talento de comunicação: ela tem o dom da palavra, é encantatória quando fala e até temível; mas, no fundo, percebemos que ela entende muito pouco do assunto de que mais fala, que é o da cultura.

É particularmente nas passagens sobre a Bulcão que Agustina mais revela a sua pena aguçada, descrevendo-a com uma deliciosa ironia que toca as raias da maldade.

A presença da Bulcão vem trazer ainda outra componente à fractura cultural com que "O Concerto dos Flamengos" nos vem confrontar. Ela parece representar uma precipitação, uma alteração demasiado acelerada nos valores e nas ideias, conquistando os seus ouvintes pela forma desabrida como se expressa, ainda que, tanto ela como eles, estejam longe de entender aqueles assuntos, que não raro se relacionam com a escrita, a poesia e o sexo; assunto este último que está mais ou menos implícito por todo o romance, como um problema que afecta directamente tanto o poder como a cultura (Os dois assuntos, afinal, centrais, neste livro.).

Herberto, por seu lado, representa um homem sábio mas apagado, bastante analítico e também bastante céptico, razão pela qual Luísa, ainda que lhe conte grande parte dos seus pensamentos relativos à História, se abstém inicialmente de lhe contar das suas visões do Cortejo de Maximiliano.

Também Herberto terá a sua palavra sobre a ocupação dos Açores pelos Flamengos e as suas repercursões no tempo actual, quatrocentos anos depois.

Quando deixam os Açores, depois do Concerto dos Flamengos, Luísa e Herberto acabam por planear um regresso, com o propósito de conseguirem ver de novo o Cortejo. O facto de irem, no fundo, em busca de uma alucinação, dá-nos conta de uma dimensão algo utópica (Que nos é referida na badana do livro, inclusivé.) que se faz sentir neste romance de Agustina. Ensaiando sobre um tempo que recebe uma cultura desfeita e incapaz de entender a sua relação com o poder, Agustina parece deixar-nos o caminho livre para repensarmos esta relação. Os dois personagens deste livro que melhor a percebem são também os únicos capazes de aceder a essa alucinação, descrita de uma forma magnífica, fazendo lembrar bastante o trabalho de Albrecht Dürer (É de lembrar que Agustina já trabalhara sobre este pintor em "O Apocalipse de Albrech Dürer", 1986.).

E será esta visão a ser realmente marcanta para Luísa, a mais definitiva; porque ela representa um todo, ao contrário do Concerto dos Flamengos, a que Luísa assiste fragmentariamente.

É, de facto, um romance com uma inclinação ensaística e politizada; paralelamente à apaixonante construção de pessoas a que Agustina sempre nos habituou. Porque se há coisa que "O Concerto dos Flamengos" consegue em todas as suas páginas, é ser apaixonante.


O Que é o Espaço?

O que é o espaço
senão o intervalo
por onde
o pensamento desliza
imaginando imagens?

O biombo ritual da invenção
oculta o espaço intermédio
o interstício
onde a percepção se refracta

Pelas imagens
entramos em diálogo
com o indizível



Ana Hatherly

O Pavão Negro

2003, ed. Assírio e Alvim

desenho de Paul Noble

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Rosa Alice Branco: O Gado do Senhor

O texto que se segue foi escrito e publicado neste blog a 7 de Maio do ano passado, aquando da primeira edição de "O Gado do Senhor" (Espiral Maior), o mais recente livro de Rosa Alice Branco, que é agora, finalmente, disponibilizado para Portugal, numa edição &etc.


O ÓPIO E O POVO





Em 2002, Rosa Alice Branco reuniu num único volume, “Soletrar o Dia” (ed. Quasi), a sua obra poética desde 1988 (Ficando excluído o primeiro livro, de 1981, assinado com pseudónimo.). Desde então, dois poemas foram editados em edições de verdadeiro luxo gráfico pela Gémeo R, “A Palmeira de Kairouan” (2003) e “Amor Quanto Baste” (2005), sendo que o primeiro poema vinha já integrado na secção inédita “Soletrar o Dia” na edição da Quasi. Só em 2009, “O Mundo Não Acaba no Frio dos Teus Ossos” (ed. Quasi, incluindo “Amor Quanto Baste”.) vem quebrar este quase-silêncio de seis anos.





Uma leitura desse livro sugere aquilo que o mais recente “O Gado do Senhor” (2009, ed. Espiral Maior.), vencedor do prémio ibérico Espiral Maior e ainda não distribuido no nosso país, vem confirmar: “Soletrar o Dia” foi o momento mais apropriado para reunir a obra da poeta desde “Animais da Terra” (ed. Limiar, 1988), porque a poesia que Rosa Alice Branco publicou no ano passado nos vem demonstrar que está completamente renovada e, nalguns aspectos, até subvertida.
Sem querer aprofundar demasiadamente um olhar sobre a obra 1988-2002 (Que compreende sete livros.), uma das características que mais ressalta na leitura da mesma é a extrema luminosidade que se faz sentir nesses versos: é uma visão que procura a luz, a beleza e a simplicidade (Que melhor prova disto que a “pesquisa” sob a forma de poesia que é “O Único Traço do Pincel” (ed. Limiar, 1997)?), e que as procura usando de uma forma muitíssimo equilibrada a sensibilidade e a inteligência, não dispensando nunca o raciocínio, as associações de ideias e a importância do pensamento e da reflexão. É também uma poesia em que nada é adquirido, tudo é continuamente questionado, codificado e descodificado, uma poesia que existe simultaneamente como elemento autónomo e elemento de ligação do individuo ao real e até às próprias palavras que constroem essa ligação, como vemos no caso de “A Mão Feliz” (ed. Limiar, 1994), onde Rosa Alice Branco explora as potencialidades do d(e)íticos.
Mas quando nos deparamos com “O Mundo Não Acaba no Frio dos Teus Ossos”, há características que se alteram e outras que surgem pela primeira vez. Talvez esse seja mesmo o livro mais “negro” de Rosa Alice Branco, um livro que mergulha profundamente nas problemáticas da morte, da ausência e do luto que, estando presentes nos livros anteriores, o estão agora de forma mais nítida. Também uma dimensão de algum pendor narrativo se faz sentir neste livro, logo no título completo, “O Mundo Não Acaba no Frio dos Teus Ossos (Pensa Ela)”. Estes parêntesis surgem ao longo da maioria dos poemas do livro, e vão-nos dando indicações precisamente de reacções, comportamentos e estados de espírito face às referidas questões que são o cerne do livro.
Redondamente diferente, no entanto, é “O Gado do Senhor”. Se no livro anterior, e mesmo no seu título, poderíamos sentir uma ponta de ironia, a ironia é precisamente uma das principais linhas de força do mais recente livro de Rosa Alice Branco. Este livro é, no seu todo, uma grande sátira com as questões religiosas, mas evita esgotar-se nelas e estende-se para toda uma dimensão social, política e humana, sempre partindo do princípio que inevitavelmente estas são afectadas por aquelas.
Os títulos de alguns poemas aludem logo para este assunto: Parábola dos Talentos, Dia dos Mortos, Arca de Noé, Crescei e Multiplicai-vos ou Via Sacra, por exemplo. Além destas expressões de cariz cristão, a poeta utiliza ainda, em alguns poemas, citações de orações ou passagens bíblicas, tendo sempre o cuidado de as inverter e relacionar com universos exteriores ao catolicismo. Por exemplo em Prova da Existência da Alma:

“O meu director fala de objectivos, fazemos mapas
e somos despedidos se. Ou temos prémios
e corrupção. Haja alguma arte em tudo isto.
Senhor, o teu corpo está seco na gaveta.
Estás no meio de nós coberto de bolor.”
(pag.35)

ou então em Sem Livro de Reclamações:

“No princípio era o verbo
e agora ninguém responde.”
(pag. 48)

A visão de Rosa Alice Branco sobre a problemática aqui colocada, a do catolicismo e da sua influência sobre a vida de toda uma sociedade em que estamos incluídos, é bastante clara: não existe um deus que nos salve ou que nos origine e encaminhe. Além do mais, exclui completamente hipóteses da eternidade ou de ressurreição, o que já não é novo, visto que num dos poemas do seu primeiro livro, Rosa Alice escreve “A eternidade é só a demência do homem”. Mas esta é uma poesia altamente filosófica (Não fosse a poeta formada em Filosofia Moderna.), e portanto, não se limita a excluir a hipótese de deus. Oferece também alternativas. E se em termos de salvação, nada mais parece possível do que o amor, em termos e origem e de caminho a única resposta é a natureza. Interessa aqui relembrar o título do primeiro livro considerado da autora, “Animais da Terra”, que aliás surge agora como título de um poema. Se já nesse título poderíamos pressentir a leve ironia de nos admitir, a nós humanos, apenas como animais da terra, “O Gado do Senhor” vem colocar certezas nessa afirmação, exaltando a nossa relação com a natureza e, mais ainda, afirmar o poder da natureza sobre nós em vez do oposto, como vemos neste excerto de Água Mole em Pedra Dura

Mastigamos o solo na erva que nos pasta
(pag. 28)

ou no poema O Cão Que me Tinha de que transcrevo o início:

“Eu tive um cão ou era ele
que me tinha e me deixava à solta
guiada sem saber onde ia.”
(pag.15)

Em relação ao amor como salvação, Rosa Alice Branco opta por uma solução bastante interessante: transfere a adoração de um Deus para um ser humano, e para isso faz uso das expressões que usualmente manifestam a adoração pelo Deus. Serve de exemplo este excerto de A Alma na Boca dos Animais:

“(…)Vem depressa
beber o cálice sagrado. Escolhi um vinho e tanto
para a noite. Depois dispo-te a pele enquanto dizes:
toma-me, este é o meu corpo: eu sou
o meu corpo a caminho do teu. (…)”
(pag.41)

Por assim dizer, a tese que Rosa Alice Branco parece defender (Vigorosamente.) neste livro é que a ideia de Deus é fictícia, sendo que a única hipótese de sobrevivência para o animal da terra que é o Homem é aceitar a sua ligação intrínseca com a natureza, e procurar a plenitude através do amor e do desejo, que devem ser vividos através da natureza ( A “erva que nos pasta”.), funcionando isto numa espécie de círculo fechado Natureza-Homem-Amor-Natureza, um círculo fechado mas livre, porque um dos seus elos, o amor, para o ser, é necessariamente livre; o que funciona como contraponto à opressão religiosa, à falta de liberdade do catolicismo, que nos obriga à mea culpa, como lemos em Arca de Noé: “Tens que sentir a mea culpa que nos ensinaram.” (pag.42).






Como acima referi, “O Gado do Senhor”, mesmo centrando-se no assunto da religião, derrama-se também sobre outras problemáticas sociais e políticas, pois que tudo é político. Uma das que me parece abordada de forma mais pungente é a da morte. Aqui, não no sentido do luto e da ausência que encontrávamos no livro anterior, mas também ela ironizada, vista quer do seu lado burocrático, quer da visão que a religião apresenta sobre ela. Em Sem Livro de Reclamações, um dos melhores poemas desta recolha, lemos o seguinte:

“O marido, a amante, a família e os amigos,
todos alinhados sobre as campas.
Começam pela oração ou correspondente laico
e logo passam às súplicas e aos subornos.
Os cemitérios são repartições públicas.
Por isso não há respostas.
(…)
A família e os demais continuam a correr aos balcões
sem os formulários preenchidos.
Os mortos já não pertencem às respostas.”
(pag.48)

Por outro lado, como disse, também a visão da religião católica sobre a morte é posta em causa neste livro. Em Receituário para as Almas lemos

“(…) Se a morte é falsa
deixa-te estar deitado. Tens um lençol de terra
e não precisas de acreditar em nada. Não é com desespero
que to peço. É mesmo por não valer a pena.”
(pag.23)

Aquilo que Rosa Alice Branco explora neste livro é um assunto explorado por já vários autores, mas creio que o faz com grande originalidade. Além das áreas acima referidas, a poeta questiona ainda a questão do sacrifício, do comportamento de fachada e do discurso ilógico que caracteriza o catolicismo. Sobre este, deixa ainda a sua máxima quanto à religião ser “o ópio do povo”:

“Como vês, a crença Nele é fervorosa e grande:
a medida exacta da nossa miséria.”
(pag.47)

“O Gado do Senhor” representa, penso, um enorme passo em frente em relação a “Soletrar o Dia”, não desprezando este, claro. E se um projecto desta natureza coloca sempre as suas dificuldades em termos de pensamento e de resolução poética, mais do que nunca, Rosa Alice Branco mostra-se muito competente no que toca a resolvê-las.

Poemas com Cinema

É sempre bastante complicado falar de antologias. Pessoalmente, são um tipo de livro que não me seduz. Por norma, são formas de os antologiadores reunirem em livro os amigos, ou os epígonos. Nada contra, se este fosse um critério assumido mas, por norma, as escolhas maioritariamente pessoais são dissimuladas com teorias e explicações que mais não são que uma fachada. Evidentemente, há excepções; tanto em antologias que, efectivamente, parecem ser feitas à revelia de questões pessoais (Ainda que seja impossível não haver alguma pessoalidade num trabalho desta natureza.) e são eficazes nos seus objectivos; quer em selecções que são assumidamente pessoais.




O primeiro caso parece-me ser o de "Poemas com Cinema", antologia lançada pela Assírio e Alvim em Novembro de 2010. Os antologiadores são Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo.


A ideia de uma antologia sobre a relação da poesia com o cinema não é propriamente inédita. Já em 1988 a Gota d´Água deu à estampa "O Bosque Sagrado- A Poesia no Cinema", organizada por Jorge Sousa Braga, António Ferreira e Álvaro Magalhães, que incluia poemas de autores portugueses e estrangeiros; como aliás é explicado no prefácio deste volume, "Antes do Filme".


No entanto, a edição de "Poemas com Cinema" parece-me, de alguma forma, mais rica no sentido em que, incluindo apenas autores portugueses, faz uma recolha mais intensiva da presença do cinema na nossa poesia, evitando assim ficar-se pelos casos mais evidentes, como acontecia um pouco com o livro da Gota d´Água.


Recolhem-se assim 92 poemas de 53 autores, que vão desde António Botto (n.1897) a Miguel-Manso (n.1979). Pelo caminho, ficam aqui poemas de grande parte dos autores mais relevantes nascidos entre estas datas (Excluindo alguns que, à partida, não terão escrito nada relcionado com cinema.); independendentemente de orientações ideológicas ou de questões geracionais, resultando, parece-me, numa selecção bastante abrangente, sem, no entanto, se tornar pouco selectiva.



De estranhar, para mim, é apenas o número escasso de poemas escolhidos de Ana Hatherly, de Al Berto e de Luís Miguel Nava.


No caso de Ana Hatherly, é-nos aqui mostrada a "Tisana 45" que é tudo menos uma má escolha mas, lembrando o livro da autora "Um Calculador de Improbabilidades" (2002, ed. Quimera), é estranha a não inclusão de um texto como "O Pastor em Imagens- Um Poema em Cinema", senão de outros em que a presença do cinema, não sendo tão declarada, é evidente também.


O caso de Al Berto, que conta com dois poemas, parece-me um caso de selecção excessiva, pois merceria mais alguns poemas, particularmente no capítulo entitulado "Filmagens" (Onde, mesmo assim, conta com um.).


Quanto a Luís Miguel Nava, encontramos aqui dois poemas de "Películas" a parece-me um pouco estranho que não encontremos nenhum fragmento de "A Inércia da Deserção", poema em prosa onde o cinema parece ser a linha orientadora. Entendo que esse poema apresentava algumas dificuldades de reprodução gráfica, mas isso seria contornável, penso eu.


No prefácio, os antologiadores explicam que "em lugar de privilegiar a quantidade (...) preferimos dar legibilidade às linhas que nos parecem mais estruturantes no diálogo da poesia portuguesa com o cinema." (pag.11). Esta é, sem dúvida, um boa opção mas, nos casos acima citados, parece-me que a inclusão de mais alguns textos teria sido uma boa aposta para precisamente explorar esse diálogo, particularmente no caso de Ana Hatherly.


O cinema português aparece-nos aqui abordado por Manuel de Freitas e Ana Paula Inácio (E, com muita boa vontade, Adília Lopes.) e, nesse aspecto, havia maneiras de incluir mais textos sobre cinema português, nomeadamente numa recolha tanto de livros da Cinemateca, onde encontramos dispersamente alguns poemas; como também através de outras antologias. À falta de outras que tenha mais à mão, a Asa editou em 2004 "Eunice", uma antologia de textos dedicados à actriz Eunice Muñoz. Teria sido uma boa ideia.


Além disso, é de sentir a falta de alguns outros poetas, dos quais me ocorrem, de momento, Isabel de Sá, especificamente o conjunto de poemas "Algumas Cenas" do livro "A Erosão de Sentimentos" (1997, ed. Caminho), poemas inspirados declaradamente em filmes; ou então de Eduarda Chiote, que utiliza o cinema como forma de escrita no livro "Travelling" (1983, ed. Oiro do Dia) e que é uma das autoras da antologia dedicada a Eunice Muñoz.


Um outro caso, este perturbante, é o de Regina Guimarães que, além das inúmeras referências ao cinema ao longo dos onze livros que publicou desde 1979, tem extensíssimo trabalho na área do cinema, quer na realização quer no argumento; estando assim colocada numa posição privilegiada neste "diálogo"; representando, portanto, uma falha imperdoável.


Outros exemplos poderiam ser os de Fernando Guimarães, algumas prosas poéticas de Maria Teresa Horta ou a proposta de Nuno Félix da Costa em "Cinematografias" (1998, ed. &etc).



Acima ficam os contras. O que esta antologia, mesmo assim, tem de muito bom, além da abrangência que assume; é também a atenção que dá aos textos dos poetas. Quero com isto dizer que esta antologia vai bastante além das referências declaradas; e tem a subtileza de encontrar textos "Onde o cima se insinua" (Título de uma das secções.), que se trata acima de tudo de encontrar uma "sensibilidade" em que a poesia se aproxima do cinema. Aqui encontramos alguns surpreendentes poemas de Carlos de Oliveira, de António Osório e de Rui Lage, onde se percebe bem como as características da sétima arte podem ser transpostas para a poesia.


Como consequência natural deste capítulo, surge-nos ainda o das "Filmagens", outra secção onde encontramos alguns textos inesperados.


Por assim dizer, as primeiras três secções, àparte as faltas acima indicadas e eventualmente outras, são realmente uma boa recolha de poemas que se referem especificamente a cinema; mas são as duas últimas secções que me parecem as mais interessantes da antologia e, consequentemente, as mais meritórias para os antologiadores.

terça-feira, 26 de abril de 2011

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Um poema

Para mim o teu corpo está sepultado
debaixo desta cidade. É a dor
que me faz sentir assim
por saber-te incapaz de amar.

O corpo deambula sem prender
a si o coração. Há o choro
submerso no olhar, a tristeza
que surpreende. Exilada de ti própria
hás-de acabar sob a medonha luz
e 0 rosto é já esse cadáver ou flor
apodrecida. Os lábios perfeitos
desenhados a pincel
são minúsculas fatias de carne
amortalhada.

Agora sou eu e não sou
enleada nas cinzas do passado,
no amor inútil que te dei.


Isabel de Sá

O Brilho da Lama

1999, ed. &etc

fotografia de Izima Kaoru


O Minuto e o Tempo

Este pequeno durar oculta numa lâmina
este tempo.

Pela carícia da pele,
nos interstícios
dos poros, a matéria
chora: a vida, essa irrecuperável doença
apunhala-a.

Quem se apercebe
de um tal crime? O Universo?
Mas que outra coisa ele não representa
a não ser um campo de funestas
delícias
onde os sinais da escassez
marcam
em cada minuto de expansão
um pensamento de morte?

A respiração,
esse imperdoável descuido
do nosso coração
desatento?



Eduarda Chiote

A Celebração do Pó

2002, ed. Asa

fotografia de Ralph Eugene Meatyard

Uma canção para o dia de hoje



Tori Amos: Father Lucifer


A propósito do dia de hoje: "Só Assim Será Poema"

Que o poema tenha carne
ossos vísceras destino
que seja pedra e alarme
ou mãos sujas de menino.

Que venha corpo e amante
e de amante seja irmão
que seja urgente e instante
como um instante de pão.

Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.

Que seja rua ou ternura
tempestade ou manhã clara
seja arado e aventura
fábrica terra e seara.

Que traga rugas e vinho
berços máquinas luar
que faça um barco de pinho
e deite as armas ao mar.

Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.



Hélia Correia


domingo, 24 de abril de 2011

A Outra Face do Vidro (fragmento)

É sempre um corpo o que vem povoar
este horizonte,
o espaço íntegro em que a vida se move,
e no entanto a febre não teve aí o seu núcleo
-ou melhor:
o que iluminou o deserto foi então uma voz.
As coisas mudavam de sentido, a sede
estagnada
despertava; a pele caía; uma visão
de raízes aumentava
-ninguém aceita a perda-, braços
apertam água como peixes, apertam
a vida: assim
recebi essa voz que chegava pelo silêncio
dos olhos; silêncio móvel
através do qual as coisas começavam
insensivelmente
a pertencer-me; uma espiral de esquecimento
subia da praça escura
em cujo fundo
dormem as árvores. Há
decerto
em tudo isto um exorcismo; não sei
em que escala se mede
a extensão daquilo em que me transformo;
não há plasma encerrado, é
um desenho livre
que apressa os dias, mãos azuis
que sobem para a conquista
e se aninham
no beiral da alegria. A voz golpeia,
tem inflexões de talismã que estilhaçam
a dor; ouço
o riso que desenha as pupilas e fico
como se tivesse descoberto
num momento
a outra face do vidro.

Egito Gonçalves

Os Pássaros Mudam no Outono

1981, ed. Limiar

pintura de Felix Labisse

sábado, 23 de abril de 2011

Outra canção para o dia de hoje



Muse: Bliss (do álbum "Origin of Symmetry", 2001)

Uma canção para o dia de hoje




Anathema: Lovelorn Rhapsody (do álbum "Serenades", 1993)


Sobre o Lado Esquerdo

De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa:"o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração".




Carlos de Oliveira

Sobre o Lado Esquerdo
1968, Iniciativas editoriais


fotografia de Nan Goldin

sexta-feira, 22 de abril de 2011



E Se a Manhã Fosse Outra?

5.

Sombras tardias? disseste sombras tardias?
mágoas, possivelmente serão apenas mágoas
as tuas lembranças

perdidas pelos cantos do castelo encantado,
fantasmas sem voz nem ferros, nem nada,
secos cavalheiros, secos

olhos podres, lábios mortos, desbotada língua,
magoado ar de quem não se pode mexer
e morde as suas mãos, assim,


José Viale Moutinho

E Se a Manhã Fosse Outra?

2001, ed. Asa

fotografia de Jorge Molder


Um poema

Não trago nada.
Não sou nenhum oceano,
não venho para te afogar.

O sol esvai-se em vento.
A areia caminha sem praia
e cada grão se faz lua
na tua cara que me olha e me busca,
demasiado nua.

Eu sou o trilho por onde sulcas.
Eu não sou nada que não esperasses.
Tudo o que a tua mão te estende,
estava escrito na tua endoderme,
no calor das tuas pernas,
nos passos infatigáveis
dos teus segundos fátuos.

Não trago nada.
Sou só água.
Venho para te afogar.



Manuel Cintra

Não Sei Nunca Por Onde

2004, ed. Quasi

fotografia de Slava Mogutin

quinta-feira, 21 de abril de 2011



Um poema

tão pouco sentimento é a emoção, que quando
do chão a levantamos se fez leve
maneira de outras águas

os camiões caminham para o norte
com serenos destroços
as maquinetas baças da invenção

será verão, os panos levantados;
terás no espelho a idade, o jeito quase
infeliz de ser homem;

o pouco amor te imita; e nunca
chegarás a saber que não existes.



António Franco Alexandre
A Pequena Face
1983, ed. Assírio e Alvim


fotografia de Ralph Eugene Meatyard

Agustina tem destas coisas... (24)

O velho motorista de Valentina, que a levava aos casamentos e ao cabeleireiro a Viana, apresentou-se subitamente munido duma lista de direitos que, somados os retroactivos, pareciam uma forma de esbulho. Valentina disse:

_Falei-lhe em francês porque isso eu sei que é o que mais o incomoda.

_A ele a toda a gente. O teu francês é horrível -disse o cunhado.
.
.
.
.
.
de "Um Cão Que Sonha" (1997)

sábado, 16 de abril de 2011

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Um poema

Que aconteceu? A pedra saiu do monte.

Quem despertou? Tu e eu.

Linguagem, linguagem. Co-estrela. Terra-próxima.

Mais pobre. Aberta. Pátria.



Para onde foi? Para o que não se perdeu.

Foi com a pedra, com nós dois.

Coração e coração. Que achámos pesado demais.

Tornar-se mais pesado. Ser mais leve.

Paul Celan

trad. Yvette K. Centeno

Poemas de Paul Celan

1979, ed. Inova

água-forte de Gisèle Celan-Lestrange

domingo, 10 de abril de 2011

domingo, 3 de abril de 2011

Agustina tem destas coisas... (23)

O marido tentava sossegá-la e fazia-o duma maneira original: gritava mais do que ela. ......................... .......................... ................................................................................................................... ........... .......... ................................ ....................... ........................ ............. ........................... ............ . . . . . de "O Concerto dos Flamengos" (1994)

sábado, 2 de abril de 2011

Lídia Jorge: A Noite das Mulheres Cantoras

THE SHOW MUST GO ON


Mesmo no início de 2011 surge-nos o décimo romance de Lídia Jorge, o primeiro desde 2007, altura em que editou "Combateremos a Sombra".

Numa autora que começa a publicar em 1980 -com "O Dia dos Prodígios"-, apesar de uma produção relativamente escassa, é o suficiente para que se entendam algumas questões que dizem directamente respeito à escrita de Lídia Jorge. A primeira de todas e, a meu ver, a mais importante, é que estes dez romances desenham, sem sombra de dúvida, um projecto: um projecto, no sentido em que existe uma relação entre todos os romances, os passados, os presentes e, provavelmente, os futuros. Tal coerência é conseguida, acima de tudo, por aquilo que parece ser uma verdade e uma convicção nessa verdade. Trata-se da verdade da autora, daquilo que constituirá o seu mundo, o seu sistema de referências, as suas preocupações e os seus objectivos, as suas obsessões. Precisamente isto faz com que Lídia Jorge seja, afinal, um dos nomes maiores da nossa literatura.

Não é, portanto, de estranhar que em "A Noite das Mulheres Cantoras" venhamos encontrar algumas problemáticas que já antes, ainda que de outras formas, encontrávamos nos romances da autora. Alguns exemplos que me parecem mais significativos: em primeiro lugar, a questão da memória, que tem sido o principal interesse desta escrita e que tem sido directamente abordada em todos os livros. "A Noite das Mulheres Cantoras", tal como "Combateremos a Sombra" abre com uma ideia que aborda directamente a dicotomia memória/esquecimento. O outro exemplo que me parece crucial é o do tempo, da mudança que o tempo implica. Aqui, encontramos o nascimento do "império minuto", focado com a mesma nitidez e a mesma crueza com que era focada a despersonalização de um povo influenciado por culturas estrangeiras em "O Cais das Merendas" (1982). Mais ainda, a análise aos mecanismos que regem a criação artística era um dos assuntos mais importantes em "O Jardim sem Limites" (1995).

Penso que, inclusivamente, o facto de neste novo romance encontrarmos algumas preocupações já expressas em livros tão distanciados no tempo, é prova evidente desse "projecto de escrita" de que falei a propósito de Lídia Jorge.

Este "A Noite das Mulheres Cantoras" abre com uma nota que explica a origem do romance, ou do monólogo que o constitui, ainda que a autora assuma que "não existem verdadeiros monólogos." (p.9): essa origem é o texto de abertura, Noite Pefeita, passado no tempo presente, em que Solange de Matos se encontra assistindo a um concerto de cinco cantoras, uma das quais é Gisela Batista, que, no final dos anos 80, integrara uma banda de que Solange também fazia parte. A noite conta com dois momentos inesperados: o primeiro será o reencontro entre Solange e João de Lucena e o segundo a revelação que Gisela faz, de que Solange havia sido a autora de todas as letras do disco que a banda havia gravado há 21 anos atrás, verdade que só agora acabaria por ser revelada.

Além destas duas surpresas, é deixada no ar a sensação de que há alguma mentira no discurso de Gisela: uma mentira que se relaciona com a ausência de Madalena Micaia, outra das integrantes da antiga banda.

É também ao longo desta noite que nos cruzamos com a noção de "império minuto", um império de "Momentos de tal modo concentrados que, ainda que ocupassem mais de meia hora, na percepção da assistência, cada prestação deveria parecer não durar mais que um segundo" (p.15), em que "tudo o que for eficaz, para ser perfeito, não poderá deixar de ser extremamente rápido." (p.15).

Na verdade, além da descoberta de algumas verdades relativamente ao que havia sido o passado daquelas mulheres, este texto é importante na medida em que, ao longo dos vinte capítulos propriamente ditos, ele será a chave para entender aquilo que une e separa os seus intervenientes mas, principalmente, aquilo que move Solange de Matos.

Os vinte capítulos são narrados por Solange e, linearmente, demonstram-nos a formação da banda das cinco mulheres cantoras, desde que a banda se forma até à gravação de um LP, ao qual se seguiria, em princípio, um grande concerto no Coliseu dos Recreios. No entanto, aquilo que marca a diferença entre uma simples narrativa descritiva ou analítica é precisamente a escolha que Lídia Jorge faz, de manter toda a narrativa entregue à percepção de Solange. É, como já foi dito pela autora em várias entrevistas, um romance psicológico, pois ele depende inteiramente da visão de Solange sobre os factos.

Solange, aos 19 anos, era uma rapariga que "vivia sobre a pele do mundo" (p.30): originária de África, depois da revolução, vivera na província e, naquele ano, muda-se para Lisboa, onde estudará Sociologia, vivendo numa hospedaria ao Campo Pequeno. A sua vida só muda quando, num almoço sindical a que os pais lhe haviam pedido que comparecesse, ela se cruza com duas colegas da Faculdade que, não conhecendo pessoalmente, admirava, desde que as vira cantar num evento universitário. São as duas irmãs Maria Luísa e Nani Alcides. As irmãs Alcides procuram Solange, para a convidar a escrever letras, lyrics, para uma banda de que fariam parte. É então através delas que Solange conhece a figura de Gisela Batista ou Mimi Batista, que gravara já dois singles, mas que entretanto iniciara uma banda de mulheres com as irmãs Alcides.

A reunião entre as quatro toma lugar pouco depois. Gisela, inicialmente não fica agradada com as letras de Solange. Ainda assim, decide confiar nela e, mais ainda, integrá-la na banda, sendo assim Solange o quinto elemento. Além dela, de Gisela e das irmãs Alcides, faz ainda parte Madalena Micaia, uma africana negra, cuja voz é, afinal, a única verdadeiramente assinalável.

De facto, aqui se juntam cinco personagens muito diferentes, cinco vozes e cinco posturas muito diversas:

Gisela tem, na verdade, uma voz frágil e sem grande potência, sendo que a sua verdadeira força é a convicção e a capacidade de liderar, bem como o bom conhecimento de todo o jogo de bastidores que gere o mundo da música e, principalmente, o da fama. É também ela quem financia todo o projecto, recebendo grandes quantias do padrasto, o senhor Simon.

As irmãs Alcides são ambas de formação clássica, sendo especialistas em música erudita. Várias vezes ao longo do romance, vemo-las quase incapazes de se adaptarem ao estilo pop pretendido por Gisela. Mais ainda, cada uma delas tem um namorado, o que origina muitas vezes conflitos de interesse.

Madalena Micaia é uma mulher trabalhadora, que mal encontra tempo para a banda mas que compensa as suas irregularidades com uma voz impressionante. A sua vida encontra-se envolvida num certo secretismo.

Por fim, Solange tem uma voz fraca, semelhante à de Gisela e aquilo que a distingue de todas as outras é a sua disponibilidade, a sua pureza e a sua capacidade de escapar aos jogos de poder exercidos por Gisela. Consegue escapar utilizando a verdade, que sempre conta.

Os ensaios da banda têm lugar na garagem de uma casa conhecida como a Casa Paralelo, onde, inicialmente, há apenas um piano, "Um piano espelhado" (pag.63).

Parece-me que estes dois elementos são de importante carga simbólica, principalmente no que toca ao que a banda significará para a vida de Solange. Repare-se que "Paralelo", o nome da casa, designa duas rectas que por mais que se prolonguem, nunca se cruzam, ainda que não possam ter identidade uma sem a outra, por perderem comparação. Assim acontece com a estudante de Sociologia que escrevia alguns pequenos poemas, que, uma vez dentro da garagem da Casa Paralelo, se torna elemento de uma banda feminina cujo projecto é ser uma das maiores. Mais ainda, Solange não é um elemento qualquer. Ainda que a sua relevância na performance propriamente dita não seja de grande importância, será ela a escrever as letras das canções, a escolher as palavras, que, em última análise, serão aquilo que conduzirá o público a identificar-se ou não com aquela música; e mesmo Gisela tem consciência disso, pois, no dia em que conhece Solange a avisa:


"Queremos uma letra contemporânea, escrita para o mundo de hoje. Nada de igual ou semelhante a ontem, estamos cansadas de amores soturnos, estamos fartas. Queremos cantar para as pessoas de agora, as pessoas vivas que encontramos nas ruas todos os dias. Pessoas normais, como eu, como tu, como nós."

(p.46)


O paralelismo que existe então em Solange, e que a Casa Paralelo me parece representar, é esse: fora dela, Solange é mais uma rapariga vivendo "sobre a pele do mundo", lá dentro, ela passa a fazer parte desse mundo, a vivê-lo verdadeiramente.

O mesmo se passa com o segundo símbolo que acima enunciei, o "piano espelhado". Funcionando como espelho (E mais tarde, surgirá naquela garagem um espelho mesmo.), ele é que dá noção àquelas mulheres de como, através da música, a sua vida pode passar a ser algo de totalmente diferente. Ao passo que a Casa Paralelo é um espelho em abstracto, o "piano espelhado" é realmente um espelho, uma prova desse paralelismo, apontando os dois no mesmo sentido. Também é significativo comparar estas metáforas com a própria dinâmica de escrita de "A Noite das Mulheres Cantoras". De facto, ao longo do seu monólogo, o que encontramos em Solange é, no fundo, um esforço para tornar nítida a sua identidade, para tornar claro o reflexo no espelho.

E, se a Casa Paralelo e o "piano espelhado" funcionam como vislumbre de uma possível nova realidade, com ela começa aquilo que verdadeiramente parece ser uma das questões essenciais deste romance de Lídia Jorge: o que é necessário sacrificar para concretizar uma ambição, e que jogos de poder será necessário levar a cabo para conseguir esse sacrifício? Estamos perante "gente que tudo aquilo que desejava em abstracto procurava alcançar no concreto, nem que para tanto fosse necessário espancar o corpo e a alma" (p.77).

É de facto Gisela quem mais está disposta a tudo sacrificar e tudo fazer para atingir as suas ambições. É por isso que será ela também a continuamente exercer sobre as companheiras o seu poder, exigindo-lhes promessas e cedências, com alguma chantagem também.

Sendo que Solange consegue manter-se um tanto á revelia de tais jogos de poder, cedo se torna clara a principal diferença entre Gisela e Solange: a primeira move-se jogando com ambição e poder, ao passo que a segunda se move de acordo com as suas próprias paixões. Ainda que abordada de uma maneira abissalmente diferente, esta oposição de comportamentos fazia um pouco parte de um outro romance de Lídia Jorge, "Notícia da Cidade Silvestre" (1984).

A paixão como móbil de Solange tornar-se-á ainda mais evidente depois que o projecto é apresentado a uma série de produtores e managers. Ainda que estes entendam que a qualidade da música é evidente, é também opinião deles que à banda falta a dimensão de espectáculo:


"Música para ver. Música para impressionar, sentir e ouvir, uma sensação conjunta que pouco ou quase nada tinha a ver com afinação mas com expressividade".

(p.87)


Este é um momento crucial de "A Noite das Mulheres Cantoras". Verdadeiramente, é nesta passagem que vemos nascer e entrar na Casa Paralelo o "império minuto": uma lógica em que a música já não pode ser só música, precisa também de ser espectáculo, de integrar em si outras artes, de, no fundo, valer por outros motivos que não a própria música.

É por esta razão que surge João de Lucena, um coreógrafo que já vivera nos Estados Unidos e que ali estava para transformar a banda de mulheres cantoras em cantoras e bailarinas. É aqui verdadeiramente que a questão do sacrifício vai ao seu limite. É assim que, já depois de se iniciarem nos ensaios de dança, em dietas para perder peso e em questões de apresentação que Gisela impõe mais uma regra:


"A certa altura, disse-nos mesmo que entre nós não haveria mais amores, nem pancadarias, nem acasalamentos, nem sonhos. Sublinhou. Nem sonhos. Disse que todos os nossos sonhos teriam que estar colocados nas pautas que estavam pousadas sobre a tampa do piano. Daquelas folhas sairiam os nossos sonhos e a elas os nossos sonhos deveriam regressar."

(p.134)


de facto, o que aqui vemos já não é um sacrifício da vida pessoal nem do tempo: é um sacrifício da própria identidade, da intimidade e da individualidade. A pessoa deixa de ser pessoa e passa a ser componente de uma unidade, de uma ambição. É tudo o que à volta disto se gera que faz com que Solange conclua que "viver é atraiçoar. Sobreviver implica trair" (p.184). Tudo isto é particularmente relevante a partir do momento em que Solange se envolve com João de Lucena. Aí, verdadeiramente, encontramos a charneira que nos dá a verdadeira dimensão do papel de Solange na banda das mulheres cantoras e em tudo o que elas simbolizam. De facto, Solange muda de comportamento quando se envolve com Lucena. Se por um lado a sua entrega ao projecto da banda não parece sofrer abalos, a sua relação com Gisela vai-se alterar pois, pela primeira vez, Solange opta por não assumir imediatamente a verdade perante a mentora. Não necessariamente por medo, mas um pouco para se proteger e proteger a relação com João. Mas, mais interessante do que isto é que, quando por fim Solange decide contar a verdade, Gisela não é capaz de repreendê-la e aqui se percebe exactamente o porquê do respeito que Gisela tinha por Solange: ela reconhece na letrista uma capacidade de entrega, um "estado de prontidão" (p.84), similar ao seu, ainda que os motivos que as movem sejam opostos, como acima defendi.

Ao mesmo tempo que a relação entre Solange e João se vai firmando, torna-se também evidente que nem todas as mulheres cantoras estão no mesmo "estado de prontidão", particularmente Madalena, que acaba por mais não conseguir esconder a desobediência às regras impostas por Solange.

Depois da revelação, diz Solange:


"Habitávamos o interior de uma granada. Éramos uma bomba armadilhada, feita de nitratos, pregos, vidros, ácido, carne humana, tudo isso, à espera de uma detonação."

(p.187)


E é de facto a partir daqui que o fim da banda começa a anunciar-se.

Uma outra questão surge também, por esta altura: a impossibilidade de Solange assinar as letras que escrevera. Já nascido, recentemente, o "império minuto", ninguém podia arriscar assumir que as palavras haviam sido escritas por uma mulher, pois uma "banda de cinco mulheres [iria] precisar de um suporte masculino de retaguarda bem forte (...) Cinco mulheres no palco, em exército de homens por detrás." (p.210).

Este facto resulta um pouco como uma negação da importância de Solange naquele grupo. Com todas as tensões a começarem, à medida que a banda cada vez menos pode ser uma paixão, como Solange desejaria, e começa a tornar-se representativa dos conceitos do "império minuto", acontece um acidente indesejável e torna-se claro que a banda não muito mais poderá subsistir.

Perante este incidente, todos fazem "promessa de mudez" (p.226), de maneira a que o espectáculo possa continuar, como dizia Fred Mercury. E é assim que Solange tira a seguinte conclusão:


"Ao fim e ao cabo, porque as pessoas não valem nada, não são nada. Mesmo depois de uma vida intensa, e donas de uma boa voz, as pessoas podem desaparecer de um dia para o outro sem deixar rasto. Ou deixam um rasto que ninguém consegue ver."

(p.228)


Na verdade, este incidente é que verdadeiramente representa as terríveis consequências do "império minuto". A fugacidade que ele exige resulta no fácil esquecimento das pessoas e, pior do que tudo, não admite que se conte a verdade.

Num outro plano existe a relação de Solange com João de Lucena. Depois de, de certa forma, ver a sua identidade posta em causa na banda, Solange acaba por se deparar com determinadas adversidades, no que toca á sexualidade, no seu envolvimento com João. Aplauda-se a sensibilidade de Lídia Jorge para abordar uma questão tão complexa e, mais ainda, a total recusa do previsível na resolução deste problema. Com tudo isto, Solange marca o seu lugar definitivo dentro do mundo, tornando-se impossível alguma vez voltar a habitar sobre a sua pele. Poderíamos falar aqui de uma certa perda da inocência, mas penso que Lídia Jorge vai bastante mais longe do que isso: ela mostra-nos que, por vezes, é impossível conjugar a paixão pessoal com aquilo que é o mundo mas que isso não implica, ou não tem que implicar, que se abdique da paixão pessoal. Verdadeiramente, neste livro, existe um palco e a escolha de o pisar ou não. É perante essa escolha que Solange termina o livro, a escolha entre a verdade e a representação, a mentira, no fundo.

É justamente essa escolha que definirá o seu comportamento futuro, que lemos em Epílogo para Mais Tarde. Vinte e um anos depois, Solange vê que nada, no fundo, mudou à sua volta. Gisela, que era a única seriamente capaz de se integrar no "império minuto" não se deixou parar por causa do fim da banda e prosseguiu o seu caminho, o seu jogo de poder, triunfando, afinal, no fim. Por seu turno, Solange continua a sentir as mesmas paixões que sentia no tempo em que integrara a banda; o que mudou foi que, pela primeira vez, ela decide guardá-las para si, protegê-las, guardando, pela primeira vez, a verdade para si mesma.



Mas nem só da história se faz este romance.

É indispensável, para poder ler-se "A Noite das Mulheres Cantoras", ter-se consciência do lado político que existe nele. Recusando os métodos mais evidentes de politizar uma história, Lídia Jorge acaba por ensaiar brilhantemente sobre algumas das maiores obsessões do mundo em que vivemos. De facto, "na história de um bando conta-se sempre a história de um povo" (p.9), como aqui vemos. A perseguição da fama, dos quinze minutos de ribalta que todos parecem querer conquistar, a qualquer preço, é só a mais imediata das problemáticas colocadas por este romance.

Se tentarmos olhar para ele de uma perspectiva sociológica, entendemos que as estrutuas sociais não funcionam de uma maneira muito distinta do que se passa nesta banda de mulheres cantoras. O funcionamento através de jogos de poder, de domínio e de submissão, continua a ser uma das culpas da sociedade em que vivemos e a forma desenfreada como se perseguem as ambições pessoais não é menos complicada. O que acontece é que, em nome da entrada para o "império minuto", tudo se torna contornável, até a morte.

E desta maneira se retira qualquer importância à memória. É particularmente esta questão que interessa referir, se sabemos que a grande arma usada em todos os romances de Lídia Jorge é a memória. Lemos algures:


"Se insisto na questão do esquecimento, é talvez porque nenhum outro assunto tenha sido tão importante quanto esse, ou talvez porque nem mesmo haja outro assunto."

(p.229)


Esta é uma ideia a reter sobre aquilo que possam ser a grande batalha de Lídia Jorge na escrita: a fixação da memória, de um tempo, uma luta contra o esquecimento; sabendo sempre que é o conhecimento do passado que nos impede de o repetir. E assim percebemos também como todos nós, além de escrevermos a nossa história, pelo menos num pouco lhe pertencemos, já que "A nossa vida, se vem vivida, não é da História, é do seu sentido" (p.34).

Outra ideia que importa sempre referir é a questão do género. Sinceramente, estou bastante farto da separação de autores por género, porque, por norma, significa que os homens são escritores e as mulheres são "umas senhoras que escrevem uns livros". É bastante imprudente pensar dessa maneira, se temos tantos homens a escrever tão mal e tantas mulheres a escreverem grandes romances. Uma destas últimas é, indubitavelmente, Lídia Jorge. É um facto que há neste romance muitas implicações relativamente à questão do género e da condição feminina, e, inclusivamente, algumas reivindicações, nomeadamente no que toca ás razões por que Solange não pode assinar as letras de que era autora. Mas o que interessa é perceber se Lídia Jorge tem na questão feminista o cerne de "A Noite das Mulheres Cantoras", e parece-me que não. De facto, a análise social e política é um dos pratos fortes deste romance, e, passando pela questão do género, não deixa de parecer mais concentrado noutras questões, nomeadamente as acima referidas, relacionadas com a memória, com a fama e com o poder. Seriam estes três elementos os que eu escolheria como temas principais deste livro, e não necessariamente a questão do género.

Uma vez mais, este romance de Lídia Jorge não escapa a um certo padrão que é claro em todos os dez romances já publicados, que é a questão do segredo. De facto, o segredo, que se relaciona directamente ou com o silêncio ou com a mentira, tem sido também uma constante desde "O Dia dos Prodígios". Aqui ele surge, uma vez mais, e reforça um pouco a ideia de que "viver é atraiçoar" e a esta conclusão podemos perfeitamente chegar lendo a obra de Lídia Jorge e, então, percebemos que a escrita representa aqui um acto de intimidade, de reunião com a consciência, pois é na escrita que a verdade vem finalmente à tona. E, associada à ideia do segredo, está a ideia da sobrevivência, da salvação: é a isso que assistimos no Epílogo para Mais Tarde. Sobre a sobrevivência, há ainda que assinalar um outro momento de "A Noite das Mulheres Cantoras": a memória que Solange várias vezes refere, do pai, em África, pronto a cortar um uma catana as mãos de um aluno. É aqui que vemos que a sobrevivência continua a ser aquilo que une todos os seres humanos, nem que ela custe os actos mais horrendos. E é precisamente isso que vemos acontecer ao longo do livro, sendo também que a sobrevivência não é um conceito unívoco, e cada um luta por coisas diferentes mas que, em última análise, representam a sua forma de sobreviver.

Uma última nota vai para a tonalidade poética que se faz sentir em "A Noite das Mulheres Cantoras". De facto, a escolha do "romance psicológico" contribui em muito para que uma linguagem sensível e bela paute todo o texto, onde é de notar ainda a atenção ao detalhe e a procura de uma linguagem que possa derramar alguma luz sobre os factos, já que só essa permite vê-los.

Segundo li numa entrevista, Lídia Jorge cortou muitas páginas a este livro. Depois de o ter lido, confesso que não lhe acrescentaria nem lhe retiraria nada, nem uma página que fosse, mas há que reconhecer que "A Noite das Mulheres Cantoras" é muito mais do que as suas 317 páginas. E isso mesmo nos mostra que Lídia Jorge continua a ser, senão a melhor ficcionista portuguesa, pelo menos uma das melhores. Ou um dos melhores, para que não se façam confusões.