domingo, 20 de novembro de 2011

[Sempre te procurei na solidão mais funda, o seu]



Sempre te procurei na solidão mais funda, o seu
novelo_ uma figura destacou-se. Seria
apenas uma imagem de espera, o grande
e nervoso esqueleto de faia desfolhada. Vinhas
longe, ainda sem abrigo, sem paredes, os lábios
frios entre os poderosos castanheiros. Pretendias
trocar as estações, a posso dum lugar escolhido, ser
uma folha de chama no rastilho de uma ideia poída,
fender a água como fissura aberta
onde se afundaram os barcos solenes do passado.

Egito Gonçalves
Luz Vegetal
1975, ed. Limiar
pormenor de uma pintura de John Everett Millais

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

As incertezas sobre os amores de Chrsitina Rossetti


Pode-se acrescentar que a Christina era extremamente reticente em todas as questões em que os seus afectos estivessem profundamente envolvidos. Destes dois casos [Os dois casamentos que Christina recusou, com James Collinson e Charles Bagot Cayley]  eu sabia bastantes coisas directamente, e podia indirectamente perceber muitas outras; mas teria sido tão indelicado quanto fútil pressioná-la com perguntas; e de muitos detalhes do segundo caso -apesar de serem importantes para o perceber- eu nunca fui conhecedor.

William Michael Rossetti 
na 'Memória' que abre 'The Poetical Works of Christina Rossetti
MacMillan, 1904

Maria Velho da Costa: Irene ou O Contrato Social

O ADMIRÁVEL PALIMPSESTO

O caso Irene Lisboa é, na literatura portuguesa, ainda muito difícil de compreender. Nascida em 1892 e falecida em 1958, Irene escreveu, desde 1936, um conjunto de obras moderníssimas, ao ponto de serem, por vezes, visionárias, onde uma indefinição entre o íntimo e o ficcional deram acesso a uma escrita intensa e despretensiosa que se movimentava entre o real e o sensível. Irene Lisboa seria talvez moderna demais para o seu próprio bem, pois não foi só durante a sua vida que Irene viu a sua obra ser rejeitada pelo menos pelo público: ainda hoje, a obra se mantém numa espécie de obscuridade, apesar do intensivo e irrepreensível trabalho crítico e editorial de Paula Morão.
Numa entrevista dada ao programa 'Câmara Clara' a 20 de Março deste ano, Lídia Jorge fala brevemente de 'Myra', o romance mais recente de Maria Velho da Costa e, sobre a obra desta escritora, diz que ela se debruça sobre o confronto com o terror. Esta expressão pode muito bem ser a mais indicada para nos dar uma visão global sobre os livros da autora de 'Maina Mendes' (1969).


Um dos seus romances, a meu ver, mais desafiantes é este 'Irene ou O Contrato Social', de 2000. Sabendo nós que este romance recupera Irene Lisboa enquanto personagem, pode parecer-nos muitíssimo estranho ler, na contracapa da primeira edição (E penso que única, até agora.) isolada a seguinte frase:

A arte não é nada à vida.

Muitíssimo estranho porque sabemos que, na escrita de Irene Lisboa, é frequente que a escrita ficcional se funda com o diário, com a memória e com a auto-representação. Dizer, portanto, que A arte não é nada à vida parece ser incompatível com Irene Lisboa. Mas o romance dir-nos-á outras coisas.
Para começar, 'Irene ou O Contrato Social' não é um romance que nos conte a vida de Irene Lisboa como sabemos que ela foi. Contrapondo o romance de Maria Velho da Costa àquilo que sabemos que, da obra escrita de Irene, se refere a ela mesma, ou a textos escritos por aqueles que a conheceram, ou a pequena biografia que dela escreve Maria Ondina Braga no seu livro 'Mulheres Escritoras' (1980), vemos que neste romance faltam factos, faltam inteiros alguns aspectos da vida de Irene, entre os quais a publicação dos seus livros. Mais ainda, esta Irene surge-nos deslocada no tempo, trazida para o tempo de escrita do romance (Terminado em Dezembro de 1999.). No entanto, Irene Lisboa está aqui. Maria Velho da Costa parece operar sobre a biografia de Irene Lisboa uma espécie de palimpsesto, reinventando-a com toda a liberdade. E essa reinvenção, longe de ser arbitrária, pretende acima de tudo, parece-me, recuperar a sensibilidade de Irene Lisboa, aquilo que Irene era, afirmando, quase que a vida não é nada à biografia, por assim dizer.
Este romance conta com o ponto-de-vista de três personagens essenciais: Irene, Raquel e Orlando. Inicialmente, Irene é mãe emprestada de Raquel, mas não temos noção de nenhum envolvimento de ambas com Orlando. Irene é uma mulher velha e observadora, que por vezes tenta escrever, escrevendo sempre pequenos fragmentos, textos curtos quase apenas impressivos. Raquel fora criada entre duas mulheres: Irene, que funciona como uma espécie de mãe, e Leandra ou Lia, uma criada de discurso sempre penalizante e desagradável, que influencia igualmente Irene. Por sua vez Orlando é um artista do graffiti, de comportamento livre e disperso, negro, que tem participação num homicídio, sendo, depois, obrigado a fugir, vagueando entre vários países, até regressar a Lisboa. Mesmo antes de se dar o encontro passional entre Raquel e Orlando e, depois, o deste com Irene, percebe-se que, entre os três, existe uma relação a nível daquilo que cada um parece representar. Irene e Raquel vêm de um meio pobre e decadente, marcado tanto pela crueldade social, como pela crueldade familiar, ocupando Lia uma posição de elemento castrador e destrutivo; e é desse meio que Irene e Raquel tentam demarcar-se, através tanto da vida, em que, dentro da solidão íntima, tentam criar elos de ligação com outras pessoas que as salvem dos fantasmas do passado e do presente, ou seja, do terror; como através da arte, dedicando-se Irene à escrita ocasional, e Raquel tornando-se actriz de teatro. Por sua vez, Orlando provém de uma família próspera e escolhe um estilo de vida de certa forma marginal, uma vida feita de desencontros e de fugas; mas a sua escolha reflecte-se também numa cultura, numa arte, que, representada pelo graffiti, guerreia as suas próprias limitações e os seus próprios conceitos.
A relação entre os três acaba por ser, efectivamente, esse confronto com o terror de que Lídia Jorge falava. Os três parecem descer ao mais negro e grotesco de si mesmos, percebendo que não conseguem separar-se do medo, da tristeza e do desamparo que sentem, e que vai contaminando toda a vida.  A alucinação aproxima-se de mim como eu me despeço de tudo. O medo vai ter tudo. (pag.79) diz Irene, a certa altura. Esse avançar do medo sobre a vida é o verdadeiro terror, o que existe dentro de nós mesmos, e que reconduz Irene à sua solidão e a confina às paredes da sua casa de infância, onde, mesmo quando Lia parte para uma viagem, se mantém o lado patológico, destrutivo e sem esperança. É aqui mesmo que está Irene Lisboa, pois o que decorre em 'Irene ou O Contrato Social' é uma muito plausível explicação para a grande solidão e a grande depressão que Irene Lisboa atravessa na sua vida e na sua escrita, onde a fragilidade da condição humana se manifesta com uma beleza triunfal.
A questão da casa, enquanto símbolo da infância, do passado e da origem do terror é muito importante neste romance não só para Irene, que nela continua a viver. Raquel é também marcada por essa casa que nunca consegue abandonar, mesmo quando abandona e a angústia que a toma só desaparece por efeito da droga: Raquel é toxicodependente e parece interiormente debater-se entre o reabilitar-se e o não se reabilitar. Dessa divisão intuímos que nunca, na verdade, ela consegue sobreviver ao terror.
Aliás, no primeiro capítulo do romance, encontramos Irene prestes a virar uma carta de jogar e, sem surpresa, verifica que lhe calha o nove de espadas. Percebemos depois que já outras vezes ela encontrara a mesma carta. E até isto nos pode dar um indício da impossibilidade de fugir, pois mesmo quando uma situação é ditada pelo acaso, o resultado é o mesmo.
Em Raquel se confirma aquilo que Orlando afirma, A arte não é nada à vida (p.174). Raquel encontra-se nos ensaios de 'A Tempestade', a última peça de William Shakespeare, uma peça que, tal como este romance, confronta o Homem, personificado por Prospero, com aquilo que de bestial e auto-destrutivo ele tem, desejando o Homem, nesse confronto, encontrar a liberdade. A Raquel cabe o papel de Miranda, filha de Prospero, com ele levada para uma ilha remota, e que Prospero tenta restituir ao lugar de onde haviam sido levados, libertando-a, portanto, da prisão tortuosa que a ilha representa. 
Miranda é, por isso, aquela que, através das ilusões de Prospero, poderoso mago, se tenta devolver à liberdade. E Raquel parece atravessar o romance incapaz de representar satisfatoriamente Miranda. Por isso, a droga pode ser essa magia que a devolve à liberdade, mas é, acima de tudo, uma solução provisória. Será Orlando quem realmente poderá libertar Raquel. Mas é precisamente aqui que se vê como A arte não é nada à vida. Raquel é em tudo uma personagem aprisionada e desesperada por se libertar, mas a experiência de vida não faz dela uma boa artista. Talvez porque a arte seja realmente um elemento específico para que a vida nem sempre é chave, pois por mais que arte e vida se identifiquem, a arte será sempre representação.
É também a Orlando que Irene pedirá a morte. Orlando é, assim, uma personagem dúplice: ele é o carrasco e é aquele que liberta.


Sobre a questão da liberdade e da libertação, interessa ainda pensar o título, ou subtítulo deste romance, 'O Contrato Social'. Seríamos impelidos a pensar no livro de Jean-Jacques Rousseau, em que lemos que o Homem, para viver em sociedade, tem que abdicar de certas liberdades. Esta explicação pode de facto dar alguma luz sobre o romance: nenhum dos personagens, no livro, se liberta, porque talvez abdicar da liberdade seja o que lhes permite estar vivos e inseridos nos sistemas sociais e culturais em que se encontram. O próprio Orlando, desafiando a sociedade, é forçado a fugir de Lisboa.
No entanto, a ideia de contrato social reinventa-se numa epígrafe citada de Américo António Lindeza Diogo:

O romance clássico decorre de uma espécie de contrato social que contratou uma natureza, ou seja, uma certeza: a representação cresce das árvores.

de facto, Maria Velho da Costa parece ter convocado, contratado toda uma natureza, todo um sistema, que está intimamente ligado a toda a orgânica do romance. Isso será relevante para o entender, agora, enquanto objecto escrito. Como sempre acontece em Maria Velho da Costa, a linguagem é um elemento que se redefine na escrita: ele é também uma forma de contar, de especificar, de contrat[ar] uma natureza, porque nos dá acesso a determinados aspectos dos próprios personagens: das suas referências, da sua formação, da sua origem. Assim, a linguagem erudita encontra o popular, mas conta ainda com uma intensa intertextualidade, onde há ecos, em português, em francês, em inglês, em italiano, em latim, em alemão, entre outras, de Shakespeare, de Alexandre O'Neill, de Maria Gabriela Llansol, de Edith Piaf, entre muitos outros e, claro, da própria Irene Lisboa. Além disso, é ainda importante a interferência do crioulo, que não é estranha à obra de Maria Velho da Costa, e cumpre também essa função de nos revelar algo sobre aqueles personagens. Por isso todo o trabalho obsessivo de reestruturação da linguagem é tão essencial à obra de Velho da Costa: porque a linguagem, tanto como os factos narrados, é uma forma de despir os personagens, de os tornar mais nítidos e inteiros aos olhos de quem lê. De resto, este romance é escrito em fragmentos relativamente curtos, impressivos e de certa forma dispersos, como que forçando-nos a esquecer uma linha puramente narrativa, e canalizando-nos para a compreensão das personalidades, das sensibilidades, enfim, da intimidade dos personagens que são, neste romance, muito mais importantes do que propriamente a narrativa.
É certo que, além da participação com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno na escrita das 'Novas Cartas Portuguesas' (1971), Maria Velho da Costa ficará sempre muito fortemente associada ao seu primeiro romance, 'Maina Mendes', que, efectivamente, é um caso único na literatura portuguesa. Mas será bom não esquecer que a escritora já escreveu obras de igual qualidade e, se lidas seriamente, de igual importância. E não tenho dúvidas de que 'Irene ou o Contrato Social' é uma dessas obras.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Had I Wist/ Tivesse eu Sabido



Had I wist, when life was like a warm wind playing 
Light and loud through sundawn and the dew's bright trust, 
How the time should come for hearts to sigh in saying 
'Had I wist' 


- Surely not the roses, laughing as they kissed, 
Not the lovelier laugh of seas in sunshine swaying, 
Should have lured my soul to look thereon and list. 


 Now the wind is like a soul cast out and praying 
Vainly, prayers that pierce not ears when hearts resist: 
Now mine own soul sighs, adrift as wind and straying, 
'Had I wist.' 


Algernon Charles Swinburne
A Century of Roundels
Chatto and Windus ed, 1883

**********


 Tivesse eu sabido, quando a vida era como um vento tépido e feliz, 
Brando e ruidoso na aurora e na névoa brilhante do orvalho, 
Que havia de chegar o tempo em que, suspirando, os corações diriam: 


 " Tivesse eu sabido... " 


Nem sequer as rosas rindo ao beijarem-se, 
Nem, ao sol, o mais encantador riso ondulante do mar, 
Teriam vindo fascinar a minha alma para que neles reparasse. 


 Agora o vento é como uma alma desterrada a rezar inutilmente 
As preces que não conseguimos ouvir se o coração lhes resiste, 
Agora que a minha própria alma, à deriva e perdida como o vento, suspira: 


 " Tivesse eu sabido. "

Algernon Charles Swinburne
trad. Maria de Lourdes Guimarães
Poemas
2006, ed. Relógio d'Água
pintura de Paulo Damião

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Epístola Para o Fogo na Memória



Revejo o imenso campo de aveia brava a arder
com uma só chama una e rasa sobre as terras.
As crianças quiseram caminhar sobre o fogo
para que caminhassem assim sobre o Sol no alto.
Pegaram-nos na mão, porém, como se a luxúria
nos levasse a desejar carnalmente as chamas.
Nós, crianças imóveis, então chorámos a olhar
tanta beleza, e nunca mais nossa e tangível.

Fiama Hasse Pais Brandão
Epístolas e Memorandos
1996, ed. Relógio d'Água
fotografia de João Gouveia

[A paisagem de vidro, levíssima asa.]



A paisagem de vidro, levíssima asa.
Era um lábio de rapaz devorando outro rapaz, era uma árvore crescendo em sangue só de fios.
Em direcção ao espelho o corpo transformava-se. A voz perturbava, ainda. Havia excessiva luz e uma frescura impossível.

Isabel de Sá
Nervura
1984, ed. Mirto
fotografia de Slava Mogutin

[Na cidade todas as casas são de pedra.]




Na cidade todas as casas são de pedra.
A geometria é mais que geometria. É vida. É polígonos de sombra à luz estática da lua, à luz invariável da lua a angular-se nas pedras. O movimento é a única realidade essencial.
Em cada esquina há um princípio e um fim. Mas todos passam e ninguém pára a meditar. Ninguém compreende o simbolismo tranquilo das esquinas, beleza fatalista das esquinas.
Na cidade todas as casas são de pedra.

Fiama Hasse Pais Brandão
Em Cada Pedra Um Voo Imóvel
1958, ed. autora
desenho de Adam Dant

domingo, 13 de novembro de 2011

Um regresso ao passado de José Saramago


Recentemente, foi editado o romance 'Claraboia' de José Saramago. Pouco mais de um ano passado sobre a sua morte, a Fundação José Saramago, presidida pela viúva, Pilar del Rio, tem sido particularmente activa e cuidadosa tanto no trabalho de reedição de muitos títulos que já estavam indisponíveis ou quase, bem como na edição de alguns textos de ou sobre Saramago que muito interessa que tenhamos ao nosso dispor, para conhecer melhor a obra do escritor.
Como lemos numa pequena nota inicial, 'Clarabóia' é um romance cuja redacção terminou a 5 de janeiro de 1953, contava Saramago 31 anos de idade e um romance publicado, a 'Terra do Pecado' (1947) que durante tantos anos permaneceu na obscuridade. A questão da publicação póstuma de obras deixadas inéditas pelos seus autores é sempre controversa, de certo ponto de vista. Um exemplo do perigo desse trabalho é a edição póstuma dos dois volumes de 'Post-Scriptum II' que Mécia de Sena preparou, depois da morte de Jorge de Sena: trata-se dos poemas juvenis do autor, escritos desde (Salvo o erro.) os 14 anos de idade e diga-se de passagem que muitos deles, mais do que serem irrelevantes para um estudo da poesia de Jorge de Sena, nalguns casos até se tornam indignos.
Não é, pelo menos até agora e, esperemos, não será de todo o caso de Pilar del Rio que tem sabido manter toda a dignidade na edição da obra de José Saramago. Isto é particularmente importante quando o caso é como o de 'Claraboia', em que, ao que se sabe, o escritor terá dito que, mesmo não querendo em vida ver o romance editado, a decisão de existir uma edição póstuma caberia à sua executora literária. Ainda não terminei o livro mas, independentemente de tudo, penso que Pilar tomou a decisão acertada. De facto, ainda que este romance nos surja como embrionário, quando confrontado com os romances posteriores, nunca ele deixa de nos parecer um livro bastante rico em ideias, escrito com uma clareza exemplar e cheio de subtilezas de linguagem e, além disso, ele é já demonstrativo das questões filosóficas, éticas e existenciais que seriam sempre uma parte crucial em José Saramago.




A verdade é que a leitura deste livro me fez revisitar um livro que há já alguns anos não relia, talvez dada a condição um tanto estranha que esse livro ocupa na bibliografia do vencedor do Nobel. Refiro-me ao iniciático 'Os Poemas Possíveis', cuja primeira edição, de 1966, da editora Portugália, não tenho (E dada a inflação dos preços nos alfarrabistas, duvido que vá ter nalgum futuro mais próximo...), mas tenho a segunda, já da Caminho, editada em 1982. Acontece que esta segunda edição, como Saramago explica no seu prefácio, procurou tornar Os Poemas Possíveis possíveis outra vez. Ao menos. (p.14), o que se traduz, não na exclusão de poemas da primeira edição, nem na inclusão de inéditos, mas em várias reescritas e correcções dos poemas originais. Mas, pelo menos no que toca aos textos da edição de 1982, fiquei de certa forma surpreendido. Surpreendido por encontrar neste livro alguns poemas cuja intensidade e o rigor me tinham escapado quando li o livro pela primeira vez, em que me pareceu, de alguma forma, um tanto tradicional e até conservador, para um livro surgido já depois do Poesia 61, da Poesia Experimental e de uma série de outros autores que se tinham estreado na década de 60, como Yvette K. Centeno ou Armando Silva Carvalho, entre outros.
Mas de facto, esta tarde, vagueando pelos poemas de Saramago, alguns fui encontrando em que já estão presentes algumas das ideias centrais da obra que surgiria depois, como uma certa mensagem política, a redescoberta do eu na escrita, que muitas vezes de aproxima de outros personagens, e, claro, o grande tema da arbitrariedade dos desígnios da vida e a necessidade de tomarmos conta do nosso destino. É uma maneira muito simplista de colocar um assunto que é de longe mais complexo, mas a verdade é que, aparte alguns tradicionalismos formais, algumas imagens que encontramos nestes poemas não deixam de ser bastante fortes, e a forma como estão escritas, que sabe dar à escrita uma dimensão plástica propriamente dita, e não apenas descritiva, tornam valiosos alguns destes textos.
Não sabemos a que ano ou -mais provavelmente- anos, estes poemas pertencem. No entanto, não será difícil imaginar que eles tenham sido escritos ao mesmo tempo que o recém-publicado 'Claraboia', ou então pouco tempo depois, e é curioso ver como, afinal, nestes 'Poemas Possíveis' parece existir a ideia da escrita -presente não só nas artes poéticas- que, de certa forma, nos parece dar um perfil deste José Saramago que tão mal conhecemos, o destes anos entre 1947, ano de 'Terra do Pecado' e 1970, ano em que, a partir do segundo volume de poesia, 'Provavelmente Alegria', Saramago começa a publicar com grande regularidade. Por exemplo, em Meias Solas:

Bem sei que as meias-solas que deitei
Nas botas aprazadas não resistem
À calçada do tempo que discorro.

Talvez parado as botas me durassem,
Mas quieto quem pode, mesmo vendo
Que é desta caminhada que me morro.

que pode, de certa forma, representar a luta pela escrita que, sabemos, era particularmente dura nesta época, em que Saramago não era aceite pelas editoras -aliás, acontece que 'Claraboia' foi entregue a uma editora em 1953, que só nos anos oitenta aceitaria editá-la, o que o escritor recusou.
E já em 'Claraboia' encontramos o escritor que escreve da observação de um imaginário minucioso e detalhado, que nada fica a dever ao real. A história de um prédio e dos seus inquilinos, com as suas intrigas, as suas amizades e inimizades, os seus segredos e os seus rumores, pode funcionar, como acontece frequentemente com os livros de Saramago, como uma parábola, uma representação do mundo, viva e palpável. Ou, nas palavras do próprio, em «As palavras são novas...»

Somos iguais aos deuses, inventando
Na solidão do mundo estes sinais
Como pontes que arcam as distâncias.

este podia ser um resumo dos livros de José Saramago, incluindo 'Claraboia': são sinais daquilo que nos une a todos, enquanto Homens, inventados na grande solidão que essas uniões não evitam.



Psicanálise



Em cada homem, dez, ou mais ainda;
Em cada homem, nove disfarçados,
E todos nove, na voz, amordaçados,
Do homem que convém palco e berlinda.


Uma porta da cave aferrolhada
A malícia do sono desmantela:
Fugidos do segredo e da cancela,
Mostram os nove o dez igual a nada.


Depois de bem torcido e recalcado,
Sacode o dez a pele e os detritos,
Disfarçando, subtil, rugas e jeitos,
Do que foi o seu corpo analisado,


Velhaca mascarada, ou sem sentido
De sombras a fingir de corpos vivos,
Cicatrizes tapadas de adesivos,
O falso dez, o zero, o um perdido.

José Saramago
Os Poemas Possíveis (1966)
1982, 2a edição, Caminho
pintura de  Rogério Ribeiro

sábado, 12 de novembro de 2011

Sobre Gustav Eiffel

BREVE CONTEXTO HISTÓRICO

A expansão mundial da Revolução Industrial, que tivera início ainda no século XVIII no Reino Unido, mas que tem maior expoente ao longo do século XIX, veio alterar todo um modo de vida, exigindo que a sociedade acompanhasse os fortes avanços tecnológicos. No que à Construção e à Arquitectura diz respeito, esta questão vem gerar um certo caos: os arquitectos dedicam-se na sua esmagadora maioria a uma construção de certo ponto de vista académica, que passa pelo segundo neo-clássico, numa primeira fase, e depois, pelo revivalismo das ordens medievais. Estas Arquitecturas, neo-clássica e romântica (dentro da qual encontramos o neo-românico, o neo-gótico e o neo-bizantino) parecia ser consonante com uma série de conceitos culturais, acompanhando com o pensamento de alguns filósofos cuevos ou outros, revisitados, sendo, por isso, uma espécie de manifestação de correntes de pensamento como o Individualismo, o Subjectivismo, o Sentimentalismo e até o Nacionalismo, que, mesmo assim, conhece presença mais plena na Literatura.
No entanto, a par destes modelos que, para todos os efeitos, ainda eram exclusivos de uma elite que tinha acesso a uma formação letrada, a Revolução Industrial vem dar origem a uma série de movimentos que em muito estão ligados á classe trabalhadora. O pensamento filosófico de Adam Smith, que incide sobre a Ciência Económica, explora o papel social tanto dos patrões como dos trabalhadores. O aparecimento das máquinas a vapor vem alterar redondamente a estruturação do trabalho que, até aí, era essencialmente artesanal. Assim começam a surgir as grandes fábricas, que dão origem a grandes movimentos de êxodo rural, havendo deslocações em massa para as capitais, de famílias inteiras que procuram trabalho. No entanto, as condições de trabalho eram de todo precárias, com cerca de 10 horas de trabalho diário, parcamente remunerado e com direito a casas pobres, pequenas e sem condições. Devido a estas cambiantes, proliferam pela Europa vários movimentos ligados à classe trabalhadora, como é o caso do Movimento Ludista, liderado por Ned Ludd, o movimento Cartista, cuja organização funcionava como uma espécie ainda embrionária de Sindicato, e que dariam origem, pouco depois, às trade-unions.
Ainda antes de 1830, ano em que se considera que a Revolução Industrial alastra para fora da Europa, já estavam definidos grandes centros urbanos e populacionais europeus, exemplo de Paris, Marselha, Londres, Berlim, de Cracóvia, Varsóvia, Frankfurt, entre várias outras, todas condicionadas por diferentes contingentes, como a oferta de emprego, ligada estreitamente à existência de fábricas, às linhas férreas onde se desenvolvia a metalurgia, e também aos portos marítimos.
Precisamente o facto de ficarem definidos no mapa de Europa vários polos onde crescem as exigências tanto da indústria como as habitacionais, a Arquitectura revivalista mostra-se, de muitos pontos de vista, incapaz de satisfazer essas exigências, uma vez que essencialmente estes arquitectos projectavam palacetes e outros edifícios destinados a uma camada social mais abastada. Assim, para responder às exigências da Revolução Industrial, surge a corrente que ficaria conhecida como Arquitectura do Ferro e do Vidro, e que é construída maioritariamente por Engenheiros Civis, que tinham um conhecimento mais abrangente das estruturas construtivas, o que favoreceria a construção em altura, e dos materiais desenvolvidos pela indústria, como era o caso do ferro e do vidro, evidentemente, mas também do tijolo, do aço e do cimento. Estes conhecimentos tornavam os Engenheiros mais aptos que os Arquitectos para resolver problemas como a necessidade de resistência ao fogo, eminente nas fábricas, problemas de escala, uma vez que estes edifícios teriam que albergar por vezes centenas de pessoas e também problemas ligados à própria concepção dos edifícios, como as coberturas, as aberturas e os esqueletos -que, a certa altura, começam a ficar à mostra-, o que, em último caso, criaria uma estética totalmente nova e concreta.


GUSTAVE EIFFEL: NOTA BIOGRÁFICA

Alexandre Gustave Eiffel nasce em Dijon, França, a 15 de Dezembro de 1832, em plena era da Revolução Industrial. Desde cedo tem contacto com a Engenharia Química, através de dois familiares que trabalhavam nessa área. Depois da formação básica no Colégio de Santa Bárbara em Paris, aos 22 anos, Eiffel terminou o seu curso de Engenharia Civil e, pouco tempo depois, estava já empregado numa empresa belga de construção de caminhos-de-ferro. Dez anos depois, no entanto, decide especializar-se na construção de estruturas metálicas, que marcariam definitivamente as suas obras mais conhecidas. Num dos seus primeiros projectos ainda nos caminhos-de-ferro conheceu Charles Nepveu, um outro engenheiro civil, que influencia bastante o trabalho de Eiffel.
Ao longo da sua vida, Gustav Eiffel viveu brevemente em Barcelinhos, Portugal, o que terá tido alguma influência no facto da sua firma ter concretizado vários projectos em Portugal, de que se destaca a Ponte D. Maria Pia (1876-77) no Porto ou a Ponte Dupla de Viana do Castelo (1878).
Gustav Eiffel faleceu em Paris, a 27 de Dezembro de 1923.


ALGUNS ASPECTOS DA OBRA

Os estudos aprofundados a que Gustav Eiffel se dedicou, particularmente durante os anos da sua especialização em estruturas metálicas foram decisivos para as várias obras que haveria de erigir. Ele aliava a análise matemática que tinha aprendido no curso de Engenharia à análise dos coeficientes de resistência aerodinâmica (que determina a resistência de uma estrutura quando sujeita ao movimento de um elemento fluido, como a água ou o ar) que seriam decisivos para a concepção técnica das várias pontes que Eiffel projectou. Outras experiências que muito interessaram a Eiffel estavam relacionadas com a utilização de caixões de ar comprimido nas estruturas das pontes, o que se pode considerar um grande avanço na área da aerodinâmica. Estas experiências, que incluíam ainda a utilização de túneis de vento, foram sendo desenvolvidas por Eiffel durante a sua carreira profissional, e seriam continuadas pelos Dezoito de Gottingen, um grupo de dezoito cientistas atómicos alemães. Mesmo tendo-se tornado eventualmente um Engenheiro bastante requisitado, Gustav Eiffel nunca chegou a abandonar as suas pesquisas e experimentações, e acabou por, ao longo da sua carreira, introduzir várias outras soluções: é o caso da estrutura em rede a que Eiffel sempre ficaria associado, uma estrutura complexa e robusta, para poder aguentar a força do vento, mas de aspecto elegante na sua filigrana delicada, o uso do ferro forjado, que aumentava a resistência dessa mesma estrutura ao vento, e é ainda o caso de uma solução prática para o acto de construção propriamente dito, o das prensas hidráulicas que passaram a ser utilizadas pelos operários para manipularem as estruturas metálicas debaixo de água.

Á ponte sobre o Rio Garona, em Bordéus, pode ser considerada a primeira obra relevante de Gustav Eiffel, em que o Engenheiro tentava já materializar algumas das suas experiências na estrutura construtiva. Esta obra data de 1858, e, a partir dela, Eiffel conseguiria uma série de outras encomendas, na Europa, particularmente em França e em Portugal, mas também nos Estados Unidos. Aqui encontramos mais três pontes, cada uma delas reflectindo a análise quase obsessiva das estruturas e das particularidades do ferro, análise essa traçada a partir das experiências acima referidas. Entre estas obras, encontram-se as pontes de Sioule (1867) e de Garabit (1882), em França, e o projecto da Ponte D. Maria Pia (1876-77), que ligava e continua a ligar, o Porto a Vila Nova de Gaia; sendo nestas duas últimas que as marcas quer técnicas quer estéticas -sendo que, muitas vezes, as duas se fundem e se geram uma à outra- de Eiffel se evidenciam mais.



Em 1878 Gustav Eiffel projecta outra obra que se tornaria emblemática no contexto do seu trabalho, mas também em todo o contexto da época, tanto pelo edifício em si, como pela importância cultural que esse edifício viria a ter. Trata-se do Pavilhão para a Exposição Internacional de Paris, um edifício com cerca de 300 metros de altura. A tendência da arquitectura para a verticalidade fica perfeitamente expressa nesta obra.
Tanto a profusa procura de engenheiros para construir pontes como a tendência, nos edifícios, para a verticalidade, de alguma forma parecem estar umbilicalmente ligados às mutações sociais e culturais operadas pela Revolução Industrial. Da manufactura artesanal, passa-se à produção em série e das fábricas saem produtos que precisam de ser transportados, o que exige um alargamento e um melhoramento das linhas ferroviárias, alargamento esse que só é concretizável com a construção de pontes que liguem lugares separados pelos rios. Além disso, a mobilização em massa de pessoas para os grandes centros urbanos também aumenta a necessidade de apostar nos caminhos-de-ferro. A ideia da verticalidade surge quase imediatamente com o alargamento das escalas dos edifícios: o eclodir das grandes fábricas que, assim, possam recolher mais operários, acaba por levar os construtores a pensarem em edifícios altos, que possam organizar o espaço das fábricas, ocupando, assim, menos área, mas utilizando-a de uma forma mais intensa.
Um caso excepcional na obra de Eiffel é o da Estátua da Liberdade, oferecida pela França aos Estados Unidos da América, e cuja estrutura havia sido desenhada por Eiffel.
A estátua propriamente dita, caracterizada por um rigor absolutamente neo-clássico, da autoria de Frédéric Bartholdi, seria um elemento simbólico acima de tudo, mas, dadas as suas dimensões, desejar-se-ia que a estátua fosse percorrível por dentro. O trabalho que compreender como sustentar a estátua e como fazê-la capaz de ter qualidades espaciais foi deixado para Gustav.

1889 é a data de conclusão de outra obra igualmente emblemática de Gustav Eiffel, a que receberia o seu nome: trata-se da Torre Eiffel, em Paris, cuja estrutura metálica, considerada extremamente ousada para a época, em termos estéticos, ainda que em termos técnicos, ela estivesse perfeitamente inserida na evolução das pesquisas do seu autor. O aspecto visual da torre mobilizou alguns intelectuais da época, que tentaram, liderados pelo escritor Guy de Maupassant, impedir a construção da Torre, sem sucesso. As experiências com o coeficiente de resistência aerodinâmica fazem-se sentir ainda nesta obra, para que parecem confluir também uma série de outras ideias já dispersamente construídas no passado.
Estas duas últimas obras que destaco parecem dar-nos nota de um aspecto tutelar da obra de Gustav Eiffel e que, em última análise, é extensível um pouco ao trabalho dos Engenheiros Civis desta época: é que, de facto, Eiffel trabalha acima de tudo sobre a estrutura. Ele interessa-se mais pelo desenho das estruturas, pela sua compreensão e pela sua renovação, entendendo-a quer como elemento em si, como acontece com as pontes, quer como elemento gerador de um espaço, como acontece com o Pavilhão da Exposição Internacional ou um pouco até com a Estátua da Liberdade, comprovando, assim, que a inovação e o desenvolvimento estruturais podem ser uma forma eficaz de gerar uma nova concepção de espaço e uma nova percepção dele. Assim sendo, a obra de Gustav Eiffel parece ser especificamente do domínio da engenharia de estruturas, uma forma racional e desenvolta de lidar com as possibilidades e as exigências abertas pela Revolução Industrial, não sendo, portanto, uma forma de tentar compensar a falta de capacidade de alguns Arquitectos da época para lidar com essas possibilidades e essas exigências.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Canção para o dia de hoje...



Carina Round: For Everything a Reason (Do álbum 'Things You Should Know', 2009)

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

[Aberto por uma bala]


Aberto por uma bala
de fora para dentro. Como um olhar de Deus,
ou da paisagem,
até à raiz do nervo de que vivo todo.
Aberto, descoberto.
Ou fechado inteiro para sempre.
E ao furo imaginário queimado
reflui o sangue do mundo.
O nó mais duro, o puro nó da carne
_o centro.
Furioso fulcro do espírito.
É aí que penso.
Por onde falo ainda tão depressa
que ressuscito, ardido.

Herberto Helder
Flash
1980, ed. privada do autor
pintura de Francis Bacon

sábado, 5 de novembro de 2011

Arco, Abóbada, Cúpula: Algumas Notas sobre o Círculo e a Esfera na Arquitectura Sacra



Arco, Abóbada, Cúpula


Como escreve C.G. Jung, Um símbolo é sempre mais do que podemos entender à primeira vista (...) permanecemos com o símbolo porque promete mais do que revela.
O arco, a cúpula e a abóbada foram elementos que, ainda que já antes encontrados, conheceram na Arquitectura da Antiguidade Clássica algumas das suas primeiras utilizações marcantes, de que é exemplo a cúpula do Panteão de Roma, construída a 27 a.C.. Mas estes três elementos parecem ter entre si uma mesma orientação estética que é a procura da inclusão do círculo ou do semi-círculo na Arquitectura. Ainda que estes elementos se encontrem nas mais variadas tipologias de Arquitectura, aquela onde parecem ser usados com mais intensidade e frequência é na Arquitectura sacra. [Os símbolos] encontram-se principalmente nas religiões (...) o crente julga que são de origem divina escreve Yvette K. Centeno no seu ensaio 'O Símbolo, Forma Impura'. A isto podemos acrescentar a ideia do Padre António Vieira de que a eternidade e o desejo são duas coisas tão parecidas que na Natureza se representam da mesma forma: um O, ou seja, podemos facilmente associar o círculo a deus, a um símbolo de deus.
Assim, e contrapondo esta ideia à de Jung, não será difícil compreender por que a Arquitectura religiosa tanto privilegiou o círculo na construção das igrejas, fazendo com que a própria concepção do edifício fosse já uma homenagem ao deus que representavam, abrindo assim caminho, de certa forma, ao espaço de devaneio (...) de comunicação entre os homens do sonho de que falava Bachelard.
Talvez isso explique por que houve a necessidade de que a cúpula da Basílica de S. Pedro, projectada por Miguel Ângelo, fosse maior que a de Brunelleschi para a  Basílica de Santa Maria del Fiore; já que, entendendo a cúpula como materialização desse símbolo perfeito de deus, a construção dela seria, de certa forma, aspirar ao absoluto.
Paralelamente ao lado simbólico destes elementos, há ainda a questão técnica que eles representam; e a sua utilização ora funciona como sustentação dos edifícios, como acontece com as estruturas de colunatas e arcadas, ora vem espicaçar a necessidade de novas pesquisas e novas experimentações que permitam construir mais livremente, como acontece com os tambores desenvolvidos para que fosse possível erigirem-se as grandes cúpulas. Muitas destas técnicas eram já dominadas na Grécia e na Roma Antigas, e o seu estudo interessou aos arquitectos do Renascimento, conseguindo-se, então, essa construção menos limitada.



Arco

O uso do arco na Arquitectura é relativamente vulgar, uma vez que as suas características estruturais permitem que receba e distribua a força de elementos muito pesados se aliam a características estéticas a que os arquitectos têm sido sensíveis desde a Antiguidade Clássica e até anteriormente, se considerarmos que na construção Pré-História a forma circular era já utilizada, e que encontramos arcadas em ruínas de civilizações como a Babilónia ou a Assíria.



Seriam, no entanto, os romanos, a utilizar mais plenamente as possibilidades do arco, uma vez que, com eles criando altos vãos, conseguiam construir edifícios de escala monumental, que, de outra forma, seria difícil conseguir. O arco de volta perfeita surge aqui, um semicírculo, que seria reutilizado na Idade Média e, principalmente, no Renascimento.
O arco de volta perfeita é depois da predilecção dos Arquitectos do Românico, que usam grandes arcadas para demarcar, nas igrejas, a nave principal das naves laterais.
Uma estética da horizontalidade seria depois, no Gótico, substituída pela da verticalidade, e então, aliado ao aparecimento das abóbadas de cruzaria, surge o uso do arco quebrado, que os sírios já haviam utilizado, e que mais facilmente se enquadrava na sugestão de elevação divina que a Arquitectura sacra gótica pretendia ser.

Já no Renascimento, o tratadista Leon Batista Alberti demonstra o seu interesse pelo uso do arco quando projecta uma ábside para a Igreja de San Martino de Gangalandi. Sobre isto, diz-nos Domingos Tavares: Do ponto de vista da forma a solução nada tem de novo. (...) O que é novo para a época é a reutilização da ábside associada ao  espaço rectangular axial, com valor de chamada a um ponto de referência principal, ou seja, a resposta que Alberti encontrou para clarificar o protagonismo daquele  espaço a ser adossado à igreja preexistente foi fazer desse espaço uma ábside, criando na parede da igreja um arco, dentro do qual ficaria um altar, ou seja, o lugar de onde seria lido o texto bíblico. Com a redescoberta e o estudo contínuo dos Arquitectos e dos restantes Artistas sobre a Antiguidade Clássica, torna-se difícil encontrar um edifício renascentista que não inclua arcos.



Abóbada

As primeiras tentativas de edificação de abóbadas remontam ao ano 6000 a.C., ou seja, durante o período neolítico, em Khirokitia, situada no Chile.


Essas primeiras experiências, que também podem ser encontradas no Norte do Iraque ou em Creta, seriam retomadas no Império Romano, onde encontramos, por exemplo, as Termas de Caracalla (entre 212 e 216 a.C.) com abóbadas de cruzaria; ou ainda a Basílica de Maxentius em Roma (308-312 d.C.) onde na nave central encontramos três abóbadas de cruzaria, e em cada uma das duas naves laterais, três abóbadas de berço.
Na Idade Média reencontramos estas soluções de construção e é frequente o uso das abóbadas de berço, na Arquitectura Românica, e das de cruzaria, na Arquitectura Gótica, e em ambos os casos parece existir a noção de que todos os elementos que compõem o edifício vão definir a própria experiência do espaço religioso, como escreve Bruno Zevi, o corpo [da igreja] torna-se organismo, toma consciência da sua unidade e da sua circulação, numa palavra, move-se.




         A Catedral gótica de Reims parece ser um exemplo bastante representativo do uso da abóbada na Arquitectura desse tempo: sem abdicar da sugestão do côncavo, as abóbadas de cruzaria procuram a verticalidade, conseguindo assim uma extrema elegância, reforçada pelas nervuras esculpidas: estas, no seu conjunto, acabarão por formar uma trama visual que em muito corrobora a ideia de um corpo orgânico apresentada por Zevi.



Cúpula

A cúpula é a estrutura de maior elevação de uma igreja, assumindo, portanto, o papel de clímax desta construção.
A nível de construção, a técnica das trompas, que fazia a transição da forma quadrangular para a circular, e os tambores, foram as exigências para que um elemento desta natureza pudesse ser construído, o que exigiu o estudo não só da Arquitectura Clássica, indispensável nesta matéria, mas também de outras civilizações menos referidas a propósito do Renascimento, como é o caso da Pérsia, onde, pensa-se, a técnica das trompas terá sido inventada.
A Arquitectura russa, ao longo dos séculos, fez uso frequente de cúpulas, ao ponto de vários edifícios terem mais do que uma (sendo disso um exemplo interessante a Catedral de S. Basílio de Moscovo), o mesmo acontecendo um pouco com a Arquitectura árabe, como se vê pelas mesquitas.




Historicamente, as cúpulas que mais marcaram a Arquitectura posterior a elas, terão sido a do Panteão de Roma (27 a.C.) e a da Basílica de Santa Sofia de Constantinopla (532-537 d.C.), talvez o exemplo mais complexo e grandioso da Arquitectura Bizantina. Em ambos os casos, é clara a vontade dos Arquitectos de que a cúpula seja o centro do edifício, entrando o visitante num lugar em que é envolvido por toda uma determinada atmosfera. Analisando, no entanto, as duas cúpulas e os dois edifícios a que elas pertencem, encontraremos diferenças bastante garridas, que o distanciamento cronológico justifica. Sendo Santa Sofia um espaço mais exacerbado e mais declaradamente religioso, o Panteão não deixa de, de certa forma, aludir também a uma atmosfera profundamente religiosa: tratando-se de um monumento a todos os deuses de uma cultura que os tinha em grande número, a solução construtiva da cúpula panóptica, que nos permite, em qualquer posição, vê-la inteiramente, parece ser o exemplo mais indicado para ilustrar a simbologia da unidade atribuída ao círculo: a de um todo formado pela junção dos fragmentos.



Seria a partir da lição dos clássicos que, no Renascimento, a utilização da cúpula volta a ser utilizada na Arquitectura religiosa cristã. A cúpula da Basílica de Santa Maria de Fiore (1420-1436), projectada por Brunelleschi seria considerada a primeira manifestação desse neoclassicismo.

Surgiriam depois outras propostas, como a cúpula do Convento de Pavia (1396-1495). Giacomo Vignola, que dedicou muito do seu trabalho à teoria e à investigação dos clássicos, projecta, em 1552, na Igreja de Santa Andreia, em Roma, a primeira cúpula circular do Renascimento.


Anos mais tarde, Michelangelo Buonarrotti seria encarregue de projectar a cúpula da Basílica de S. Pedro de Roma, que, suposto, seria a maior de todas, e que só foi terminada em 1590.







__________________________________________________



Bibliografia

BACHELARD, GASTON, 'A Poética do Espaço', Edição Martins Fontes, S. Paulo, 6a edição, 2003
CENTENO, YVETTE K., 'Literatura e Alquimia', Editorial Presença, Lisboa, 1a edição, 1987
JUNG, C.G., 'The Collected Works' (cit. vol. 18: The Symbolic Life), Routledge & Kegan Pauld, Londres, 1977
TAVARES, DOMINGOS, 'Leon Batista Alberti, Teoria da Arquitectua', Dafne editora, s/l, 1a edição, 2004
VIEIRA, PADRE ANTÓNIO, 'Sermões', Imprensa Nacional-Casa da Moeda,  Lisboa, 
ZEVI, BRUNO, 'Saber Ver a Arquitectura', Edição Martins Fontes, S. Paulo, 5a edição, 1996

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Indispensável


Elementos Naturais e Outros Figurantes
pintura e assemblage da pintora e poeta Isabel de Sá
inaugura na Galeira Porto Oriental, amanhã