quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Maria Ondina Braga: Lua de Sangue

CONTURBAÇÕES

Com Irene Lisboa, aprendemos que o público em geral, e muitas vezes a própria crítica especializada, respeita acima de tudo o romance como género literário. Irene, autora, principalmente, de novelas, contos e crónicas, permaneceu, até aos dias de hoje, numa certa obscuridade, e nem os bons pareceres de personalidades como José Gomes Ferreira ou José Régio ou os ensaios atentos e cuidadosos de Paula Morão, entre outros, foram suficientes para trazer para a luz uma obra que está, certamente, entre as mais grandiosas da literatura portuguesa.
Passou-se o mesmo com Luísa Dacosta, o mesmo com Ilse Losa, o mesmo com Hélia Correia (Durante, pelo menos, os primeiros anos do seu trabalho, na escrita de novelas.). E, se repararmos bem, veremos que autores mais estudados e reconhecidos, também tiveram nas suas incursões por outros territórios que não o romance, alguns dos seus trabalhos menos estudados: estou a lembrar-me de 'O Lugar Comum' (1966), livro de estreia de Maria Velho da Costa, um livro de contos, que continua a ser um dos seus livros menos estudados.
Vem toda esta contabilidade ao caso para falar de Maria Ondina Braga. Ela pertence a uma estirpe de escritores cuja maior parte da obra está escrita nesses géneros mais curtos, como são a novela e o conto. Encontramos-lhe apenas três romances propriamente ditos, 'Estátua de Sal' (1969), 'A Personagem' (1978) e 'Nocturno em Macau' (1991), numa obra que compreende, ao todo, vinte e dois títulos.

'Lua de Sangue', editado em 1986, reúne três novelas relativamente curtas, que serão bons exemplos da força da escrita de Maria Ondina.
Antes de partir para algumas notas sobre cada uma das novelas, penso que terá interesse realçar aquilo que as une, pois podemos intuir que não terá sido por acaso que a autora decidiu juntá-las num mesmo volume, quando as poderia ter editado separadamente.
Para começar, encontramos nas três novelas um pouco aquilo que encontramos no trabalho em geral da autora, que é o tema da solidão. Em muitos dos casos, quando uma mulher escreve sobre a solidão, somos impelidos, quase intuitivamente, a classificar esses textos como relatos da 'solidão feminina' ou da 'condição feminina'. Muitas vezes, por motivos vários, essas expressões pecam por serem por demais vagas, generalistas, facilitistas e até com pouco fundamento. No caso de 'Lua de Sangue', no entanto, pressentimos que existe um debruçar, efectivamente, sobre a questão da mulher. E isto não acontece por, de facto, nas três novelas termos protagonistas mulheres, mas porque, até certo ponto, as três novelas se focam em problemáticas associadas às mulheres, ou mesmo exclusivas delas (Caso da terceira novela, que dá título ao volume.).
Outro aspecto que une as três novelas aqui publicadas é também a questão da comunicação entre os vários personagens. É uma questão que pode parecer meramente ocasional, já que ela surge apenas subliminarmente. No entanto, há que reconhecer que nesse jogo entre contar e não contar, entre o silêncio e a verdade, ficam enriquecidas e mais verosímeis as tramas aqui apresentadas.
Por último, há a questão da linguagem. Na escrita destas novelas, é impossível não notar todo o trabalho de transpiração que existe na recriação de uma linguagem oralizada, onde o popular e o vernáculo e até a gíria são trazidas à luz, e isto tanto nos diálogos, que mesmo assim não são muitos, como nas próprias contemplações da narradora. Ora, todo este esforço resulta, evidentemente, numa maior proximidade ao real, a toda uma gramática pertencente a determinada camada social e a determinado tempo, que aqui se pretende retratar. Assim, parece-nos mais contextualizado todo um imaginário a que não são estranhas questões como a religião, a persistência quase discreta das hierarquias sociais e também uma certa sobreposição de uma cultura popular e de uma cultura erudita, que tem palco na cidade de Braga, dando-nos uma pista sobre as épocas em que estas histórias decorrem, e que não são explicitadas, mas que podemos intuir serem as décadas de cinquenta a setenta ou oitenta.
'O Gato' abre este volume. Nesta novela, encontramos uma família de mulheres, três filhas e a mãe. A sua vida pacata e harmoniosa é perturbada quando, uma noite, seguindo um gato, Balbina, a filha mais nova, tem uma espécie de visão de Nossa Senhora, na cozinha.
Confusa com o significado desse episódio, Balbina muda completamente de comportamento, e, ainda que só admita a verdade à sua irmã Mariquinhas, na casa, todas sentem esta mudança e todas tentam resolvê-la, de várias maneiras. A grande confusão que se gera leva Balbina, ainda que adoecida, a casar; o que não resolve nada. 
Na verdade, 'O Gato' parece ser uma novela a que não escapa uma profunda mas discreta ironia. Trata-se acima de tudo de problemas de interpretação. Mesmo não querendo pessoalizar demasiado a análise a este livro, mas sou tentado a pensar que há uma certa crítica à Igreja, e à ideia dos milagres que parecem ser a grande ambição de toda a fé. Partindo do princípio que assim é, o resultado não poderia ser mais travesso à expectativa. Balbina, de repente, parece de repente ser afectada por qualquer doença nervosa e, ao mesmo tempo, vê toda a sua vida ser virada do avesso, tudo porque a sua postura inspira todo o tipo de interpretações erráticas que, em última análise, acabam por prejudicá-la mais do que melhorá-la.
Segue-se 'A Flor do Heliotrópio', a história da peculiar família de Helga, filha de uma artista de palco espanhola e de um oficial alemão. O relato da sua vida, que se funde com uma tentativa de compreensão dela mesma e do significado de todas as características recambolescas do seu historial, é contraposto à vida propriamente dita, em que Helga continua a atravessar conturbações várias. No meio de tudo, a memória do tio internado num hospício onde havia Heliotrópios em flor parece ser uma das poucas memórias pacíficas que Helga tem. Além da linguagem oralizada que marca a escrita das três novelas, como acima disse; há que notar ainda uma componente que, de alguma forma, nos parece algo teatral e satírica nesta história.

A fechar o volume, encontramos a novela chamada 'Lua de Sangue', que me pareceu, a mim, a melhor das três. Inês acaba de regressar de uma estadia em Londres, para a sua casa de família. Nessa altura, é contratada uma nova criada para servir na casa, Maria de Jesus. Inês tenta escrever um romance, mas, além de ter dúvidas sobre as suas capacidades de escrita, não parece conseguir encontrar assunto. No entanto, quando recebe uma chamada para a empregada, vinda de um asilo onde estaria internada a filha desta, Áurea, Inês percebe que o assunto para a sua novela pode muito bem ser Maria.
Numa noite de insónia, Maria conta a Inês a história da sua vida, que passa por Braga, Guimarães, Vila Real e Lisboa e por várias conturbações e poucas alegrias. Momento de maior intensidade será aquele em que Maria vê o luar sem ser menstruada -aparentemente, sempre era menstruada na lua cheia-, e percebe que está grávida. Cabe a Maria Ondina o logro de ter conseguido, nesta novela, levar o trabalho de linguagem a um ponto de intensidade realmente assinalável.
E, no final, a novela não deixa de nos parecer desoladora, já que, depois de toda a história contada, tanto a vida de Maria e de Inês continua a mesma, Maria demite-se por ser incapaz de viver na mesma casa que uma mulher que lhe conhece a história, e o romance de Inês fica por escrever. Digo que é desoladora esta novela, muito pelo seu niilismo, mas esse niilismo nunca chega a ser derrotista, pelo contrário. A vida surge-nos então como valiosa por si mesma, independentemente de todos os dissabores não serem compensados.  E assim esta novela se desvia do lugar comum de se tornar a história de uma mulher vencida.
Independentemente da visibilidade que Maria Ondina possa ter agora, cinco anos apenas depois da sua morte, parece-me que livros como 'Lua de Sangue' são bons exemplos da relevância literária que a sua obra continua a ter. Era, por isso, bom que não a esquecêssemos. 

1 comentário:

Graça Martins disse...

Mais uma vez revelas a capacidade de desvendar a trama, muitas vezes remetida para o silêncio, de uma voz feminina. Neste caso o grito de incómodo da Maria Ondina Braga.Fruto de uma época machista em que as mulheres lutavam pela sua autonomia, o direito a existirem...
Em muita escrita feminina a revolta aparece de forma simbólica, velada, criticando os elementos repressores da "trilogia do nojo" Deus, Pátria, Autoridade.
Mais uma voz, que como muitas outras vozes femininas, fica à mercê de modismos, que em função de gostos ou interesses editoriais são despertadas para o público...
A capa Lua de Sangue é design da Graça Martins (a menina com a lua menstruada nos braços...),um lapso do João...