segunda-feira, 31 de outubro de 2011

É hoje

a música do emblemático 'Halloween' (1978) de John Carpenter, que é também o compositor. Como não relembrá-lo hoje?

domingo, 30 de outubro de 2011

We Are The Ocean: Go Now and Live

AUTO-GRITO


Depois de dois EPs e de um primeiro álbum, 'Go Now and Live' vem mostrar que os We Are The Ocean são, realmente, uma proposta interessante no cenário actual. O que não tem faltado são bandas de alternative-rock, orientadas por uma dimensão experimental que umas vezes dá resultados originais, caso dos primeiros álbuns dos Arcade Fire, ou outros um tanto-quanto mais amorfos, caso dos Arctic Monkeys.
Nota-se que a dimensão experimental passa um tanto ao lado dos We Are The Ocean, pelo menos a uma observação mais imediata, inserindo-se perfeitamente naquilo que se tem chamado (Estranhamente.) a onda brit-pop. No entanto, uma audição mais atenta pode-nos mostrar a multiplicidade de texturas que a música destas bandas contém, conseguidas pelas composições e pelas estruturações, mais do que pelas escolhas de instrumentos, que, de resto, são os básicos. Ou seja, é com esses poucos meios que os We Are the Ocean tentam criar alguma coisa de novo, e esse esforço é muito evidente em 'Go Now and Live'. O que acontece é que, mais do que nos álbuns prévios, esse esforço é geralmente bem-sucedido, notando-se em todo o disco uma unidade que não é interrompida por canções menos conseguidas.
'Go Now and Live' abre com Trouble is Temporary, Time is Tonic, uma canção tensa e equilibrada, que funciona muito bem como abertura. Muito longe de ser um momento desinteressante, é no entanto aquele que se pode considerar um dos momentos mais mais contidos em todo o álbum, juntamente com Now and Then, essa sim, a canção pouco interessante, uma vez que, ainda que seja irrepreensível, parece um pouco vulgar. Follow What You Need primeiramente parece seguir a mesma tendência, mas logo se transforma numa canção enérgica e de certa forma comovente.
Outras canções parecem destacar-se, como What it Feels Like, que do lamento da letra parte para uma expressão completamente explosiva, como The Waiting Room, onde a angústia da letra,  resolvida musicalmente com uma dose impressiva de raiva gera o momento mais potente de 'Go Now and Live', Overtime is a Crime, que apresenta uma certa irregularidade de ritmo, que as vozes ajudam a marcar, acaba por ser um momento de invulgaridade, ou Godspeed onde se nota até uma certa inclinação para o industrial, com alguma coisa de Nine Inch Nails, ainda que sem o recurso da electrónica.


Mais ainda, estas canções mostram-nos como os We Are The Ocean parecem operar com 'Go Now and Live' uma espécie de ressonância aos conceitos básicos do rock, reinventando-os a partir daí. O protagonismo está nas guitarras eléctricas, claro, e o lado acústico não tem aqui particular relevância. Importa sempre referir o facto dos We Are The Ocean terem dois vocalistas, Dan Brown e Liam Cromby, o que poderia facilmente estragar tudo. Mas o facto é que, canção atrás de canção, a banda sabe evitar os clichés e os passos em falso da questão das duas vezes, conseguindo-se evitar perfeitamente a tendência para o dueto, que seria muito inconveniente para estas canções. Pelo contrário, a entrada em cena de cada um dos vocalistas está longe de ser arbitrária: Dan fica encarregue de gritar magistralmente, e Liam fica para cantar mais melodicamente, mas não menos brutalmente. Isto porque este é um tipo de rock que passa ao lado da tendência depressiva. O que encontramos em 'Go Now and Live' são sentimentos de raiva, por um lado, e da libertação de a expressar. A melancolia não pára por aqui (Com muito boa vontade, encontra-se na ponte de What It Feels Like.), pelo menos musicalmente: falar das letras dos We Are The Ocean é acima de tudo falar de situações-limite, de solidão, de exclusão, de relações mal acabadas ou mal resolvidas e de um grande abandono. Também isto, se pensarmos bem, está na génese do rock, que nunca foi a música dos felizes. O resultado de tudo é que 'Go Now and Live' parece efectivamente um grito, mas um grito que se dirige a quem grita, ordenando-lhe que se exprima, e assim, possa levantar-se.
Onde 'Cutting our Teeth' (2010), que, mesmo assim, era um álbum curioso, poderia deixar algumas dúvidas, a verdade é que, somando a experiência desse álbum com os dois EPs iniciais, 'We Are The Ocean' (2008) e 'Look Alive' (2009) parece finalmente ter resultado num objecto que é, todo ele, congruente e a que não falta nada. Uma obra acabada, portanto.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

[Foi um dia de inúteis agonias]



Foi um dia de inúteis agonias. 
Dia de sol, inundado de sol!... 
Fulgiam nuas as espadas frias... 
Dia de sol, inundado de sol!... 


Foi um dia de falsas alegrias. 
Dália a esfolhar-se, _o seu mole sorriso... 
Voltavam ranchos das romarias. 
Dália a esfolhar-se, _o seu mole sorriso... 


Dia impressível mais que os outros dias. 
Tão lúcido... Tão pálido... Tão lúcido!... 
Difuso de teoremas, de teorias... 


O dia fútil mais que os outros dias! 
Minuete de discretas ironias... 
Tão lúcido... Tão pálido... Tão lúcido!... 



Camilo Pessanha
Clepsidra e outros poemas
1969, ed. Ática (org. João de Castro Osório)
fotografia de Izima Kaoru

domingo, 23 de outubro de 2011

Bem-vindo ao Ano Zero



Deram-me a riqueza,
mas não me disseram o que fazer com ela.


Iegueni Ievtuchenko

Com a minha idade, o meu pai já era um homem honrado,
o meu avô trabalhava na marinha mercante,
disparava ocasionalmente um ou dois foguetes
em direcção a terra seca, em homenagem ao amor de uma mulher
que conheceu antes da minha avó e que me teria dado
olhos azuis e muito menos problemas.


Aos dezoito anos os meus pais participaram na Revolução.
O meu avô também. Tinha quarenta e cinco.
Depois os meus pais casaram, desculparam-se com o ciclo da vida,
o país parecia estar no bom caminho, a casa ainda não.
Quis ser actor o meu avô, depois de ter passado
cinco dias e quatro noites a traduzir uma peça de Brecht
num quarto da pensão Rosa com vista para o rio Sado.

Então nasceu o meu irmão com os olhos que – toda a gente
confirmava – eram iguaizinhos aos da minha mãe.
Depois nasci eu e depois a minha irmã, com olhos de Varsóvia,
não tão honrados quanto belos.
Eu ainda nasci em Portugal, a minha irmã já não, nasceu na CEE,
que entretanto tinha ensinado a minha mãe e o meu pai a serem
ainda mais perfeccionistas nisso de serem honrados.
O meu avô continuava a traduzir Brecht e desconfiava
da PAC e de tudo aquilo que pudesse ser formulado
apenas em três letras.
Para ele, no mínimo, eram necessárias quatro.

Foderam-me a vida, o meu pai e a minha mãe,
e o pior é que o fizeram para que eu pudesse chegar
aos vinte e três anos e dizer que já sou um homem honrado,
tal como o meu pai tem sido, ao contrário do meu avô,
que prefere Brecht à linear organização comercial
do novíssimo amor português.

E pior ainda é que tenho vinte e três anos
e corro o risco de já ser um homem honrado.



David Teles Pereira
in 'Criatura', nº 4

fotografia de Ralph Eugene Meatyard

sábado, 22 de outubro de 2011

Maria Gabriela Llansol: Um Arco Singular, Livro de Horas II

SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA A ESCREVER


Maria Gabriela Llansol não é uma autora de fácil leitura. Seria interessante quantificar o trabalho crítico já desenvolvido sobre os seus livros (1). Não me presto a este trabalho, mas as críticas e ensaios com que ocasionalmente me tenho cruzado, mostram que as leituras possíveis de Llansol são tantas quantos leitores houver, ou até mais, porque o mesmo leitor não consegue ter apenas uma leitura desta obra. Acontece assim com toda a grande literatura, mas a natureza do texto Llansoliano é particularmente incitante a esta situação.
Falecida a autora em 2008, livros inéditos continuam e, esperemos, continuarão, a ser publicados. É importante que assim seja, pois cada novo livro é mais uma porta para um universo que pode ser fechado, mas não é blindado, e nele podemos penetrar através da leitura.
O projecto da série de Livros de Horas foi o último da autora, sendo o primeiro destes, 'Uma Data em Cada Mão' (2009), o livro pensado por Llansol para suceder a 'Os Cantores de Leitura' (2007).

O presente 'Um Arco Singular: Livro de Horas II' é pois o segundo volume desta série, cobrindo os anos de 1977 e 1978, passados em Jodoigne.
É com bastante pertinência que João Barrento e Maria Etelvina Santos assinalam na introdução algumas distinções entre os dois Livros de Horas até agora publicados. Por um lado predominam registos tendencialmente mais pessoais (por vezes mesmo íntimos) do que no primeiro volume. (...) Por outro lado, põe-se mais à vista  a oficina de Llansol, sobretudo no que se refere ao trabalho de entrosamento da experiência com a narração e a escrita (pags 14,15).
Dois livros se encontram aqui em formação: 'A Restante Vida' (1982) e 'Na Casa de Julho e Agosto' (1984), segundo e terceiro volumes da trilogia Geografia de Rebeldes.
'Um Arco Singular' será, e aqui retorno à ideia da abertura do mundo fechado, uma excelente leitura a fazer paralelamente à destes livros, em particular de 'Na Casa de Julho e Agosto'. Aqui encontramos diversos registos das pesquisas de Llansol sobre as beguinas e a alquimia -dois universos que em muito definem o livro de 1984 -e também a aproximação, que se dá a nível de uma intimidade reflexiva, às personagens que integram os livros -caso de Luís M., das Damas do Amor Completo e de Hadewijch. A informação que temos aqui sobre estes assuntos menos comuns, pelo menos na cultura portuguesa, e as aproximações de Llansol às suas figuras podem, portante, ser boas formas de acedermos à génese dos livros que a escritora desenvolvia à data, e também uma forma de perceber a sua origem -o momento em que estas figuras e estes universos chegam à escrita de Maria Gabriela Llansol (2).
Os processos são complexos e por vezes demorados, mas -por isso mesmo -extremamente fiéis ao que terá sido a dinâmica de escrita dos livros. Tão fiéis que, não raras vezes, a fulgurância destes escritos diarísticos é capaz de nos surpreender, de nos comover.
É aqui que entra outra característica que me parece crucial nestes Livros de Horas e que é o seu valor enquanto texto isolado. Ou seja, se bem que a leitura de 'Um Arco Singular' seja um bom paralelo aos dois livros cuja escrita acompanha, é importante que não se pense que a leitura do diário é mero complemento. Pelo contrário, estes textos demonstram-se auto-suficientes e, na maior parte das vezes, acabados. Ainda que a escrita llansoliana tenha sido sempre pródiga em assumir o fragmentário e dele aproveitar as melhores potencialidades, muitos destes textos são realmente textos acabados, dispensando qualquer outro apoio para a leitura.
Voltando ao adequado apontamento dos introdutores, 'Um Arco Singular' também dá uma visão da vida pessoal de Maria Gabriela Llansol. São raros os textos realmente íntimos, mas muito menos raros são os textos que nos dão uma perspectiva do quotidiano da escritora. Não se trata de textos confessionais, mas, na maioria dos casos, de textos bastante analíticos sobre as condição em que, à data, viviam Llansol e o marido, Augusto Joaquim. Dentro deste tema encontramos as dificuldades económicas, os crescentes problemas na Quinta de Jacob, as pesquisas de Llansol sobre a sua família, e ainda alguns trabalhos, como cozer o pão ou costurar. E se em 'Uma Data em Cada Mão' a situação editorial de Llansol não lhe merecia grandes comentários, 'Um Arco Singular' contraria essa tendência. Recorde-se que o diário anterior inicia em 1972, um ano antes da edição de 'Depois de Os Pregos na Erva', e a ausência de anotações sobre ela pode causar alguma estranheza (Além de Llansol ter assegurado os custos da edição na Afrontamento, representa também o encontrar de um editor após onze anos sem publicar.), talvez isso se possa explicar pelo facto de Llansol não ter dado particular importância a esse livro -dos três textos que o compõem, apenas um foi reeditado.
Neste segundo livro, encontramos já em fase de edição 'O Livro das Comunidades' (1977), e com a edição, não só análises da situação editorial como até cartas ao editor, a antologiadores, a amigos, família e críticos; e ainda algumas notas sobre reacções ao livro, particularmente a primeira de duas críticas de João Gaspar Simões.

Um outro assunto recorrente neste Livro de Horas é o das leituras de Llansol. Talvez este assunto possa ser um meio-termo entre a escrita e o quotidiano da autora. Porque se a leitura preenche uma considerável parte do dia-a-dia de que o livro dá conta, a leitura muitas vezes é fonte de reflexão -que pode ou não ter parte nos romances em formação  -e também recolha de informação necessária para a escrita. Assim encontramos autores que não têm uma relação especial com os livros que Llansol escrevia, caso de Katherine Mansfield ou Virginia Woolf; e também outros que são procurados pela informação que fornecem, caso de Henri Corbin, Regine Pernoud, Julius Evola, entre muitos outros.
A escrita deste diário é também em parte paralela a 'Finita' (1987), segundo diário publicado em vida pela autora, que cobre os anos de 1974 a 1977. Uma comparação nem muito profunda entre os dois livros, partindo do princípio que 'Finita' é um conjunto seleccionado por Llansol de cadernos como os que dão origem à nova série, pode elucidar-nos sobre as diferenças entre os três diários editados em vida e estes, que se prendem essencialmente com a questão do texto acabado. De certa forma, 'Finita' tem também uma certa presença em 'Um Arco Singular'.
Acima de tudo, este livro dá-nos a observar uma mulher que luta pela sua escrita -por descobri-la, por formulá-la, por solidificá-la. E daí nos fica também a consciência de que foi essa a ocupação e a preocupação de Maria Gabriela Llansol. O título deste volume, seleccionado pelos organizadores, é sugerido a Llansol pela leitura de Rilke. Porém, a mim fez-me pensar na famosa Arte Poética II de Sophia de Mello Breyner Andresen: O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos (3). O mesmo podemos dizer do texto de Maria Gabriela Llansol.


NOTAS:
(1) O presente texto tem data de 8 de Outubro de 2010. Nas Terceiras Jornadas Llansolianas, em Sintra, a 24 e 25 de Setembro de 2011, foi editado um 'Caderno de Leituras' (ed. Mariposa Azual) que recolhe alguns textos críticos publicados sobre a autora, particularmente nos livros em que está presente a temática da Europa.
(2) Também nas Terceiras Jornadas Llansolianas foi lançado o livro/álbum 'Europa em Sobreimpressão: Llansol e as Dobras da História' (ed. Assírio e Alvim) em que esta questão, entre outras, tem lugar.
(3) Poema publicado pela primeira vez na revista Távola Redonda em Janeiro de 1963; e depois coligido no livro 'Geografia' (ed. Moraes), de 1967.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

American Horror Story



Já vi os dois primeiros episódios, e gostei. Fiquei bastante surpreendido, por duas razões: a primeira é que os criadores desta série são Brad Falchuk e Ryan Murphy, os criadores das séries Nip/Tuck e Glee, duas séries que têm sobre mim o efeito de me deixar no mais completo coma mental (Costumo ver Glee quando estou terrivelmente cansado ou com problemas.); a segunda é que uma série sobre uma casa assombrada parece a ideia mais cliché que se podia encontrar para uma série de horror.
No entanto, confesso que American Horror Story me surpreendeu ao máximo. Trata-se da história de um psiquiatra, Ben Harmon (Dylan McDermott) que se muda com a família para uma casa antiga em Los Angeles, depois de, em Boston, ter tido um caso com uma aluna, aquando de uma fase difícil entre ele e a mulher, Vivien (Connie Britton), quando esta tem um aborto espontâneo. A casa, apesar de espantosa, é bastante barata, uma vez que o anterior habitante havia assinado ali mesmo o seu namorado, suicidando-se depois.
Evidentemente, fica no ar a suspeita de que a casa estará, muito provavelmente, assombrada.
Além dos fragmentos do passado que nos são mostrados no início dos episódios, há ainda a premonitória presença obsessiva de Addy (Jamie Brewer), uma rapariga mongolóide, da sua mãe um tanto invulgar, Constance (Jessica Lange) e a governanta Moira, que aparece como uma mulher velha (Frances Conroy) a todos, com excepção de Ben, que a vê como uma jovem atraente (Alexandra Breckenridge).
Para aumentar o ambiente um tanto surreal que se respira naquela casa, a filha adolescente de Ben e Vivien, Violet (Tarissa Farmiga) começa a namorar com um dos pacientes do pai, Tate (Evan Peters), que sofre de uma grave perturbação que inclui o instinto de matar aqueles que ama.
A série está cheia de referências ao universo sado-masoquista, e, por outro lado, parece interessada em reinventar alguns dos clichés do cinema do terror, tornando-os, nessa reinvenção, um não-cliché, por assim dizer. Tratando-se de uma série de televisão, cuja primeira season (Não está decidido se haverá segunda.) conta com treze episódios, é de notar que é criado um certo impasse relativamente a algumas questões, no entanto, esse impasse não se traduz numa ausência de novos dados sobre a casa, nem num retardar da acção: bem pelo contrário, os dois episódios marcam já alguns avanços na narrativa.
De louvar é também a escolha dos actores, que recusa completamente os estereótipos em que o horror parece ter caído, e que se prendem essencialmente com o compensar do elemento gore com a beleza física dos actores. Não há aqui gente feia, no entanto, todos os actores parecem gente normal, e a isso a caracterização bastante casual ajuda muito.
Por último, destaco ainda o genérico, que consegue ser a um tempo discreto e contundente, com imagens que, não sendo, pelo menos até agora, relacionadas com o universo da série, para o seu género nos remetem.
A continuar a ver, sem dúvida.

Eu cantarei um dia



Eu cantarei um dia da tristeza
Por uns termos tão ternos e saudosos,
Que deixem aos alegres invejosos
De chorarem o mal, que lhes não pesa.


Abrandarei das penhas a dureza,
Exalando suspiros tão queixosos,
Que jamais os rochedos cavernosos
Os repitam da mesma natureza.


Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
Ave, fonte, montanha, flor, corrente,
Comigo hão-de chorar de amor enredos:


Mas ah! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos,
Que eu derramo os meus ais inutilmente.

Leonor de Almeida Portugal, Marquesa de Alorna
Poesias
prefácio e notas de Hernâni Cidade
1941, ed. Sá da Costa
pintura de Isabel de Sá

Júbilo


Há um presságio de júbilo
à sua beira, um tecido
na trama do contrário


Uma rosa de mar
na sua esteira, uma espécie
de ardil em seu afago


Um modo
Um todo
Uma maneira


De misturar 
o doce
e o amargo.

Maria Teresa Horta
in Jornal de Letras,  nº 1061
Junho de 2011
imagem: Retrato de D. Leonor de Almeida Portugal, Condessa de Oyenhausen e quarta Marquesa de Alorna

Maria Teresa Horta: As Luzes de Leonor

POESIA, PAIXÃO E LUZ(ES)

Maria Teresa Horta é uma poetisa. Esta afirmação é, por si só, bastante básica, dadas as mais de oitocentas páginas de poesia que em 2009 foram reunidas na Dom Quixote. Além dos vinte e um livros de poesia que Maria Teresa Horta publicou desde 1960 (Três dos quais no Brasil e um outro em França.) é autora ainda de cinco obras de ficção, 'Ambas as Mãos Sobre o Corpo' (1970), 'Ana' (1975), 'Ema' (1983), 'Cristina' (1987) e 'A Paixão Segundo Constança H' (1999), além das 'Novas Cartas Portuguesas' (1974) escritas com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, e de vários contos dispersamente publicados (Ocorre-me O Grito que fecha 'Espelho Inicial' e que, tanto quanto sei, nunca foi reeditado, ou um conto publicado no volume colectivo 'Amor, Luxúria e Morte' de 1987.). 
Serve este breve levantamento para continuar a frase com que comecei esta nota de leitura. É que mesmo nas novelas e romances que Maria Teresa Horta tem vindo a publicar, aquilo que lemos são ficções escritas por uma poetisa. Há uma linguagem em tudo poética que nunca desaparece da escrita de Teresa Horta, por isso, ela é uma poetisa, mesmo quando não está a escrever poesia. E talvez seja essa presença poética que faz da sua prosa tão apaixonante e intensa (Leia-se, como exemplo, 'Ema', um texto verdadeiramente contundente.).
Já foi dito, inclusivamente pela própria escritora, que onde a sua poesia é luminosa, a prosa é obscura. Concordo. É verdade que onde essa linguagem poética serve para revelar no texto poético, serve para ocultar no texto em prosa.
No entanto, uma leitura da 'Poesia Reunida' mais recente vem mostrar-nos algo de curioso: é que nos primeiros três livros, pelo menos, os poemas de Maria Teresa Horta surgem-nos de alguma forma obscuros, enigmáticos, cheios de imagens explosivas cujo encadeamento nos exige um certo trabalho de desocultação. É mais ou menos isto que vai acontecendo com o seu trabalho em ficção.



Após treze anos de trabalho intensivo de pesquisa e de escrita e reescrita, em 2011 surge-nos 'As Luzes de Leonor', romance de peso (E não me refiro apenas às mais de 1000 páginas que tem.), e, de uma forma muito geral, é possível que este romance marque na prosa de Maria Teresa Horta aquilo que 'Verão Coincidente'  (1962) marcou na sua poesia. A figura central neste romance é Leonor de Almeida Portugal, Condessa de Oyenhausen e, mais tarde, quarta Marquesa de Alorna. 
Neta dos Marqueses de Távora, protagonistas do famoso processo judicial que terminou com a execução em praça pública da família e do encarceramento dos seus descendentes, Leonor foi presa no Convento de Chelas em 1758, quando tinha apenas 8 anos, juntamente com a mãe, Leonor de Lorena, e a irmã Maria Rita. Só foi libertada aquando da morte de D. José I, e da perda do poder de Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal. Durante os dezanove anos em que está enclausurada, Leonor conquista a reprovação da maioria das freiras que ali viviam, ao mesmo tempo que se dedicava ao estudo das Luzes, que fariam dela não só mais culta do que a grande maioria das mulheres do seu tempo, mas também mais culta do que a maioria dos homens. Paralelamente, a sua poesia é notada na grade do convento e, quando sai, é uma invulgar e fascinante mulher de 27 anos, que levará uma vida onde a independência e a determinação existirão ao lado de dissabores, desgostos e da frustração de estar muito à frente do seu tempo.
É este percurso que Maria Teresa Horta escreve no seu romance, até ao encontro com Henri Forestier, general de Vendeia, quando Leonor conta cinquenta anos.
Mas o que mais me interessa aqui notar é a forma como este romance está escrito. Muitos já se referiram a este livro como uma biografia. Nada mais errado. E dois indícios nos bastam para nos comprovar que não só 'As Luzes de Leonor' não é uma biografia, como não tem sequer a pretensão de o ter: primeiro, porque termina aos cinquenta anos de Leonor, que viveu até aos noventa e quatro; segundo, porque muito do que aqui lemos não está documentado, não pode ser comprovado, sendo disso exemplo maior o capítulo respeitante à Revolução Francesa, por onde Leonor passou, mas de que não há documentos que nos digam como. Este é, no entanto, um romance histórico, e fruto de muita investigação. Ainda assim, histórico não seria uma das primeiras palavras que me ocorreriam para falar deste livro depois de o ter lido. Isto porque, ainda que realmente este romance decorra nos séculos XVIII e XIX, está escrito de uma forma que não denuncia directamente a pesquisa que para ele existiu: tudo está escrito com tal naturalidade, com tal verosimilhança, que, enquanto o lemos, não lemos sobre um passado, estamos nesse passado, que assim se torna presente. Página após página temos apaixonadas descrições de cenários, de roupas, de comida, com um verdadeiro deleite nos sentidos, com tacto, com paladar, com som. E é muito aí que está a voz da poetisa: na preferência dada às sensações e ao psicológico, em detrimento de um levantamento histórico, que muito nos diria das referências de Leonor, mas pouco nos dariam dela enquanto pessoa. Porque é essa a verdadeira meta de Maria Teresa Horta: encontrar a mulher que foi Leonor de Almeida, o que é muito mais ambicioso do que querer traçar-lhe um perfil intelectual. O perfil intelectual está lá. No entanto, estão também os sentimentos, está o erotismo, estão as angústias e os desejos, estão as confusões, as contradições, enfim: está uma dimensão totalmente humana, e é difícil conseguir-se uma humanidade tão grande em literatura, o que também nos leva a pensar que este é um romance de maturidade, que não podia ter sido escrito por um autor inexperiente. 
Falo de uma dimensão humana, mas, mais específica do que essa, há a dimensão feminina. É importante referi-la, não só pelo feminismo que Maria Teresa Horta tem sempre defendido, mas também porque a questão da mulher é orgânica ao caso de Leonor de Almeida. O facto de ter sido mulher foi decisivo para o curso que a sua vida tomou, pois não só lhe marca, evidentemente, a sensibilidade, como lhe condicionou todas as escolhas e lhe vedou muita coisa que estava disponível para os homens. Ainda hoje a sociedade é, no geral, machista. Mas, naquele tempo, nem de machismo se pode falar, mas sim de misoginia. Foi desta que Leonor foi vítima, ainda que com pontuais excepções, todas elas conseguidas dentro de um meio cultural de elite que muitas vezes era insuficiente para a proteger de dissabores como o facto de não poder ter sido Ministra Plenipotenciária na Áustria ou o exílio ordenado por Pina Manique. Sempre movida por um exemplar espírito crítico, de justiça e de insubmissão, Leonor marca uma espécie de pré-feminismo em muitas destas páginas.

Tenho falado até agora da (re)criação de Leonor feita por Maria Teresa Horta, no entanto, interessa não esquecer que este romance, ainda que recuse terminantemente ser uma sistematização de informações e documentos, não está escrito sem apoios. Não só sabemos que Teresa Horta investigou a fundo a vida da Marquesa de Alorna, que, aliás, é sua avó; como muitos desses documentos nos surgem integrados no texto: cartas e páginas de cadernos e diários.
Retomo então a ideia que acima apontava, de que talvez 'As Luzes de Leonor' marque na prosa de Teresa Horta aquilo que 'Verão Coincidente' marcava na poesia. Isto porque, é certo, este romance parte de uma certa obscuridade. No entanto, a forma facetada como Leonor é olhada, que passa por ela e pela maioria daqueles que estão à sua volta, acaba por iluminá-la, torná-la clara e nítida. E por isso, este é um romance verdadeiramente luminoso.
Interessa ainda apontar a questão estrutural, muito importante em 'As Luzes de Leonor'. O romance está dividido em capítulos, que, por sua vez, se dividem entre um poema da Marquesa de Alorna, uma secção Raízes onde lemos a história de família de Leonor, textos de Memória onde Leonor, já mais velha, analisa os acontecimentos passados, fragmentos narrativos sem título, e ainda apontamentos de Caderno e Diário, Cartas, a secção Angelus, onde nos fala um anjo que segue Leonor numa paixão obsessiva e platónica, e ainda, por vezes, monólogos. Assim a história é contada com pequenos espaços de reflexão e de meditação, como que dando-nos o outro lado dos acontecimentos, que é o da sua percepção psicológica, que tem um papel preponderante neste livro. É uma arquitectura complexa mas perfeitamente lógica e que organiza a leitura.
Por fim, interessa sempre pensar na questão do romance que parte de uma personagem real. A verdade é que é difícil escrever um romance desses, porque a procura de alguém, neste caso de Leonor de Almeida, terminaria na Leonor de Maria Teresa Horta (E na nossa, quando lemos o livro.). Porém, isto não impede que a Leonor aqui encontrada se afaste da Leonor que realmente existiu. O epílogo do livro retoma a epígrafe inicial, de Virginia Woolf.

Vivi em ti durante todo este tempo -agora, que eu parto, com quem te pareces tu, verdadeiramente? Será que existes, ou inventei-te dos pés à cabeça?
(p. 13)

diz-nos Woolf,

E ao pretender conhecer-te, em tudo te descubro e te reinvento.
Tão depressa mulher como poetisa ou política ou sábia e sonhadora, mas sempre personagem, porque eu não faço a tua biografia: tento recriar-te minha avó, inventando-te do grão de luz ao bago de romã.
(p. 1054)

diz-nos Maria Teresa Horta. É facto que de outra forma não poderia ser. No entanto, ao terminar o livro, é impossível que não fiquemos com a sensação de que esta Leonor está realmente muito próxima daquela que efectivamente existiu, e de que lemos as cartas e os poemas. Uma mulher em tudo apaixonante e apaixonada e que não só está à frente do seu tempo, como nalgumas coisas, parece estar à frente do nosso. 
Parece-me interessante notar que este livro surge depois da edição da 'Poesia Reunida', pois, no fundo, todas as preocupações e temas que lemos na poesia de Maria Teresa Horta, estão de alguma forma presentes neste romance: a questão da mulher, a sexualidade, a análise histórica (Que encontramos em 'Cronista não é Recado' (1967).), a intelectualidade, a luta pela justiça, a sensibilidade, o sonho, o exercício da paixão e o exercício da poesia como um só.
Podendo parecer que o livro é longo, asseguro que a sua leitura é tudo menos enfastiante. Bem pelo contrário, de tal forma 'As Luzes de Leonor' nos atrai para a Marquesa de Alorna, que ficamos a imaginar como seriam os restantes quarenta e quatro anos de vida de Leonor escritos por Maria Teresa Horta.
Mais ainda, a autora anunciou para breve a edição de um poemário que acompanhou a escrita do romance. Eu, pelo menos, espero ansioso.

Canção para o dia de hoje



Nine Inch Nails: Every Day Is Exactly the Same (Do álbum 'With Teeth (Halo Nineteen)', 2005)

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

[Com os seus nomes há-de chegar a morte,]



Com os seus nomes há-de chegar a morte,
e neles se desprende outro sentido
para envolver agora qualquer réstia
de luz, o que nos cerca como o vento


preso a leves perfis de novo erguidos
assim como veias, lábios que procuram
apenas a surpresa da palavra
mais cedo abandonada noutra súbita


manhã que se transforme no vestígio
da voz quase desperta ao recordar
o que nos pertencia e foi mais nosso


que a suspeita, o lamento onde se apaga
o limite de tudo, um gesto ao longo
da nudez, que era a sombra de a mostrar.

Fernando Guimarães
Casa: O Seu Desenho
1985, ed. Imprensa Nacional- Casa da Moeda
desenho de Henry Moore

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Carlos Queiroz: Fernando Pessoa, o Poeta e os Seus Fantasmas [org. Maria Bochicchio]

ALGUMAS NOTAS DESNECESSÁRIAS

Sobre o texto que compõe este livro, 'O Poeta e os Seus Fantasmas', escrito por Carlos Queiroz em 1940, não poderei dizer muito, pois creio que o prefácio de Maria Bochicchio, organizadora do volume, é por demais esclarecedor e completo. Trata-se de uma conferência inédita em livro, e lida pelo autor numa palestra, como apresentação do poeta Fernando Pessoa, ainda pouco divulgado na altura. O texto torna-se no entanto bastante valioso, no sentido em que não só constitui uma leitura sintética e adequada da obra de Pessoa, como ainda nos dá uma dimensão algo pessoal do poeta que apresenta, já que Carlos Queiroz era, além de sobrinho de Ofélia, a namorada de Pessoa, como um bom amigo do poeta.


As notas que desejava aqui deixar sobre 'Fernando Pessoa: O Poeta e os Seus Fantasmas' prendem-se essencialmente com a natureza da edição. Trata-se de uma edição crítica, em que temos, pela primeira vez, acesso a um texto que pode fazer realmente bastante diferença para uma leitura da obra de Pessoa, mas também sobre o impacto que essa obra teve no seu tempo, como foi lida, e o que é que, dessa época, continua a ser lido hoje numa mesma obra, além do valor do lado pessoal do texto. Esta edição é ainda bastante cuidadosa no que toca a contextualizar o texto que lhe dá título, mostrando-nos a notícia de jornal onde é dado parte do título da palestra (Que não está no manuscrito.), mas também contextualizando a relação entre Queiroz e Pessoa através de algumas cartas e envelopes, do texto que Pessoa escreveu sobre 'Desaparecido', o primeiro livro de poemas de Carlos Queiroz, de 1935. Este trabalho de recolha parece-me realmente importante, no sentido em que ele nos fornece toda uma história que é, de facto, relevante para a leitura do texto 'O Poeta e os seus Fantasmas'. Mas, mais importante que isso, esta recolha dá-nos, finalmente, acesso a alguns curiosos textos sobre Fernando Pessoa que, até hoje, se mantinham inéditos ou inacessíveis ou quase-inacessíveis. É o caso de algumas cartas trocadas entre os dois poetas, o manuscrito do poema 'O Amigo' em que Carlos Queiroz fala de Pessoa, a Palestra de 9 de Dezembro de 1935, que Queiroz leu na Emissora Nacional e cujo texto veio a ser editado em 'Homenagem a Fernando Pessoa, com excertos das suas cartas de amor e um retrato por Almada' (ed. Presença, 1936, edição extremamente rara.), a 'Carta à Memória de Fernando Pessoa' editada no número 4 da presença (1936) e o texto 'Efemérides' de 1938, nunca editado.
Exceptuando o texto principal, que também aparece transcrito, os restantes surgem-nos em fac-simile dos manuscritos e dactiloescritos e mesmo das suas impressões originais noutras edições. Através das correcções e rasuras, encontramos algumas das hesitações de Queiroz, sobre a forma como explicaria Pessoa, e, muitas vezes, essas correcções dão-nos conta da meticulosidade com que Queiroz desejaria expressar-se sobre o seu amigo e admirado poeta. Além disso, o interesse pelo lado filológico era também decisivo num anterior trabalho de Maria Bochicchio, 'O Paradigma do Pudor' (2007), edição crítico-genética de 'A Chaga do Lado' de José Régio.


Ainda sobre as várias naturezas de documentos que aqui encontramos, também me ocorre realçar que o tipo de recolha que a organizadora faz para este volume bastante sólido é um tipo de trabalho que, infelizmente, tende a desaparecer. A entrada em vigor das novas tecnologias acaba por fazer desaparecer as cartas, a caligrafia, as correcções, e até as várias 'vozes' que podemos descortinar ao ler um manuscrito, marcadas pelo desenho das próprias letras. E por isso, saber aproveitar as potencialidades de tudo isso e apresentá-las fac-similidas, não deixa de me parecer uma boa opção por parte de M. Bochicchio. Ainda que muitos considerem a análise filológica algo árida, eu penso que ela nos dá uma dimensão bastante importante sobre o texto que é escrito -em última análise, num manuscrito podemos compreender a crítica que o autor faz sobre si mesmo, e que o leva a substituir determinada palavra, riscá-la com mais ou menos intensidade, até atingir um texto acabado.
Penso que este livro não deixa de ser uma leitura importante, não só pelo insight que nos dá sobre Pessoa, como também pelo que nos dá sobre a personalidade poética e crítica de Carlos Queiroz, que poderá ser-nos útil na leitura das suas Obras, que a Ática/Babel começa agora a editar.

O Homem do Saco


Uma incontinência de vapores oleará as máquinas que se furtam
aos ritmos colectivos
aos coaxos perfeitos
aos amores volúveis.
O homem do caso lava-se uma vez por século, pensava eu, entre duas colheradas de sopa. No círculo branco debruado de azul flutuavam troços de couve arrepiada: semi-cerrados olhos destrinçavam as rotas: suas rosas, seus ventos. O quadro acima desescrito prolongava-se anormalmente; no círculo marejado de azul (debruado de verde?) pousavam moscas, cabelos, caliça. A íris escapava ao minúsculo labirinto da podridão. Meu olhar, porque me abandonavas?
Era preciso lapidar o homem do saco.

Outras feras felizes devorariam as palavras vãs que de mim fizeram o que fui. Um céu apa-lavrado abater-se-ia sobre o nada que das feras restaria. A felicidade reinaria caso se tomasse O NOVO ESPÍRITO DE CONTRADIÇÃO. No azul e verde dos mapas, as serras encolheriam as garras. A terra em-fim plana enrolar-se-ia num gracioso esgar.

Este peditório reverterá a favor da compra de um saco. O saco será arrematado em leilão público. O comprador do saco percorrerá mundo, enviará postais. Os clichés assombrarão um número razoável de gavetas. Reconciliado com o mundo, voltará o homem com o seu saco despejado.

A lua infestada de cães. O rabo, talvez, entre as pernas. O saco, decerto, às costas.

Nas ruínas respira-se o futuro do passado. As ruínas rimam com violadores, intrusos, visitantes. Nelas se perde e reorganiza o sentido plástico. As formas ferozes debruam-se de cor-dura, as vacas emagrecem a olhos visto e quem tudo pode, tudo vomita. Golfadas de crepúsculo lavam as pedras que sabem banir os objectos do sacrifício. Nas ruínas corre o leite das mamas moles das madrastas.

Regina Guimarães
in 'Ruínas'
1990, série 'Elogios', Quatro Elementos editores
colagem de Raoul Hausmann

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Canção para o dia de hoje

 Rufus Wainwright: This Love Affair (Do álbum 'Want Two', 2004)

sábado, 15 de outubro de 2011

The Annihilation of Nothing



Nothing remained: Nothing, the wanton name
That nightly I rehearsed till led away
To a dark sleep, or sleep that held one dream.


In this a huge contagious absence lay,
More space than space, over the cloud and slime,
Defined but by the encroachments of its sway.

Stripped to indifference at the turns of time,
Whose end I knew, I woke without desire,
And welcomed zero as a paradigm.

But now it breaks—images burst with fire
Into the quiet sphere where I have bided,
Showing the landscape holding yet entire:

The power that I envisaged, that presided
Ultimate in its abstract devastations,
Is merely change, the atoms it divided

Complete, in ignorance, new combinations.
Only an infinite finitude I see
In those peculiar lovely variations.

It is despair that nothing cannot be
Flares in the mind and leaves a smoky mark
Of dread.
               Look upward. Neither firm nor free,

Purposeless matter hovers in the dark.

Thom Gunn
Collected Poems
1994
pintura de Francesco Goya

Canção para o dia de hoje



Marilyn Manson: Sweet Dreams (Are Made of This) (Do EP 'Smells Like Children', 1995)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Do Extermínio



24.
Tudo está a ser desenhado por um arquitecto.
Primeiro as casas, depois os homens. E só então
se define o leito de todas as mortes. Os pássaros
removem a palha por entre os tijolos, enquanto
o arquitecto olha para o espelho e revê a cidade
antiga. Como o reflexo acaba nas margens do vidro,
ele constrói para cima em direcção ao sol até que
os prédios ardam e as cinzas transformem o chão
numa cintura de veludo.

Jaime Rocha
Do Extermínio
1995, Black Sun editores
desenho de Frank Lloyd Wright

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Maria Gabriela Llansol: Um Beijo Dado Mais Tarde

O LIVRO DOS PODERES DA CASA

No primeiro Livro de Horas publicado de Maria Gabriela Llansol, 'Uma Data em Cada Mão' (2009), lemos que, originalmente, a escritora tinha pensado como título 'O Livro dos Poderes do Livro' para o livro que acabou por chamar-se 'A Restante Vida' (1982).

Aquele título ocorreu-me ao terminar, pela segunda vez, 'Um Beijo Dado Mais Tarde' (1990), que poderia muito bem ser uma espécie de livro sobre os poderes da Casa. Entre 1977 e 1988, Maria Gabriela publicou seis livros essenciais da sua bibliografia, que compõem duas trilogias ligadas entre si: 'Geografia de Rebeldes' ('O Livro das Comunidades', 1977, 'A Restante Vida', 1982 e 'Na Casa de Julho e Agosto', 1984.) e 'O Litoral do Mundo' ('Causa Amante', 1984, 'Contos do Mal Errante', 1986 e 'Da Sebe ao Ser', 1988.). No entanto, se eu tivesse que relacionar 'Um Beijo Dado Mais Tarde' com livros anteriores de Maria Gabriela Llansol, talvez eu o relacionasse mais com os dois diários publicados até aí, 'Um Falcão no Punho' (1985) e 'Finita' (1987): talvez porque, neste romance, mais do que em qualquer outro dos até aí editados, sentimos muito profundamente uma presença da própria Maria Gabriela, que, desta vez, escreve sobre alguns episódios da sua infância, relacionados acima de tudo com a família. Pode parecer demasiado simplista ver assim este livro, no entanto, talvez estejamos na altura de não olhar mais a obra de Llansol como encriptada, e de começarmos a compreender a simplicidade que está depois da compreensão das regras e desvios da sua escrita.
O tema da família de Llansol não surge aqui pela primeira vez. Vale a pena recordar 'E Que Não Escrevia', um dos 'livros' que formava o segundo volume publicado da autora, em 1972, 'Depois de Os Pregos na Erva'. Em 'E Que Não Escrevia', encontramos já aquelas que serão as figuras matriciais para ler 'Um Beijo Dado Mais Tarde': a criança, que será uma projecção de Maria Gabriela, a criada Maria Adélia, o pai e a filha que o pai terá tido com essa criada, e que não chegou a nascer, que, no livro de 1972, se chama 'a irmã uterina'. Não sei se será muito adequado dizer que este livro é uma reescrita do de 1972, mas, sendo que a história é, de alguma forma, partilhada pelos dois, será impossível não notar que os quase vinte anos que separam estes dois textos são relevantes para aquilo que é 'Um Beijo Dado Mais Tarde', no que toca a uma outra fluidez do discurso escrito e a uma maior riqueza de imaginário que também se faz sentir: por assim dizer, 'Um Beijo Dado Mais Tarde' tem mais elementos do que 'E Que Não Escrevia' e, no entanto, é escrito com maior clareza e maior simplicidade.
Este livro começa com uma imagem deveras violenta e grotesca. Uma cabra é presa a um castanheiro e, de seguida, o homem vem e corta-lhe a língua:

mais nenhum ruído atravessou o nosso sossego, mas uma segunda língua, com parte no céu-da-boca, principiou a nascer-lhe,      e ela foi a voz.
(p.7)

A violência do corte da língua física é seguida do nascimento de uma segunda língua que, aqui, é também linguagem. Deste momento, surgem duas figuras tutelares para a restante obra de Llansol, Aossê (Que é Fernando Pessoa.) e a rapariga que temia a impostura da língua, Témia. 
A imagem inicial da morte e renascimento da língua é continuado durante a morte de Assafora, tia da narradora, cujo aproximar da morte a leva de volta para a casa da infância, na Rua Domingos Sequeira, em Lisboa. E assim, depois da morte de Assafora, a casa tem sobre a narradora, enquanto eu central, o poder de lhe devolver o tempo passado e, mais importante ainda, o tempo antes dela nascer. A casa vai sendo esvaziada dos seus móveis e dos seus objectos, alguns que a narradora leva para a sua casa actual, outros que vende em dois lugares distintos, e é no espaço que ali fica que a narradora descobre a sua própria história. Podemos relembrar Gaston Bachelard, que, no seu 'A Poética do Espaço' nos fala do espaço da casa como centros do devaneio que são meios de comunicação entre os homens do sonho. Mais ou menos assim poderíamos ver a casa da Rua Domingos Sequeira. Ela é o meio de comunicação entre o eu que nos conta a história e as figuras que orientarão, de certa forma, essa história. Há várias figuras presentes: Aossê, Johann (Bach), Infausta, Anna Magdalena e também a Jovem Vestindo o Seu Jardim (Que aqui surge pela primeira vez.), entre outras. No entanto, as figuras essenciais para esta história são mesmo Témia e Ana ensiando a ler a Myriam, a Estátua da Leitura.
Isto porque as relações essenciais entre a narradora e as dois elementos do seu passado, Maria Adélia e o pai, são expressas através do ensinar a ler, do aprender da língua, que se desenrola ao mesmo tempo que o medo da impostura dessa língua. E estes dois planos são também uma ponte para o nascimento da própria escrita, que, por si só, parece representar uma voz diferente, quase como uma segunda língua de características específicas

_Com voz mais baixa do que ler.
_Com a voz de escrever.
(p.59)

Assim, a aprendizagem dessas vozes, de ler e de escrever, é o nascimento de um mundo, que se deseja, mas que, ao mesmo tempo se teme. Os objectos da casa, de alguma forma, acabam por responder à questão da escrita, ora aderindo a ela ou ora parecendo alinhar-se com o medo dela

um grande carneiro deitado, que eu julgava paralítico (...) move-se para ler
(p.25)

Palonsa Gazela (...) Ela era, finalmente, o corredor que, no meu quarto quieto, desorientava, nas suas voltas, o meu coração e o meu texto
(p.102)

Enquanto Ana ensina a ler a Myriam, a narradora vai escrevendo a sua casa, e o texto escrito é onde a casa se torna um espaço de confluência de tempos e de episódios, reunindo assim os homens do sonho de que Bachelard falava. A figura do pai, como Quimera ou Filipe, é uma espécie de figura que da sombra irradiasse, trazendo consigo toda a sorte de fantasmas já que, no fundo, todo este livro é construído precisamente em torno desses fantasmas, o que nos leva, de certa forma, de volta ao violento início deste livro.

__________ o homem só vulto esteve aqui hoje, com a sua imagem infeliz. (...) Quando o olho, no íntimo de mim mesma, e no seu lugar objectivo, não tenho pensamento. Ele traz às costas um saco onde vai deitando todos os restos de misericórdia que há por aqui, incluindo a misericórdia por nós que brota de uma  fonte algures, ignore onde. (...) Há-de voltar esta noite, enquanto eu dormir, para entrar no meu sonho. Transporta também o que for intimamente nosso, e que lhe tivermos entregue, por bem.
(pp 97,98)

À medida que a história vai sendo escrita, percebemos que a relação essencial dela, e que, na verdade, se transpõe pela imagem da Estátua da Leitura, é aquela entre a criança e a criada, em que o amor da segunda pela primeira, espécie de compensação pelo bastardo perdido que é projectado na criança legítima, é compensado pela primeira através do ensinar a ler. E a leitura toma o lugar do amor, ou torna-se um veículo deste. 
Quase no final do livro, Ana parte da Estátua da Leitura, e esta torna-se vazia. O tempo de abandonar de vez a casa que testemunha toda a história aproxima-se e, deslocando-se nos vários tempos que estão a ser escritos, a narradora recolhe os últimos objectos que quererá guardar para si, e este momento parece trazer de volta a descoberta da figura do homem como iniciador do Universo, mas também como origem da perturbação, uma vez mais questões que são explicadas através da imagem da casa

Sob o olhar masculino, girava uma casa dentro de outra -um princípio do Universo onde estava em vias de expandir-se o verde inicial. Ele só podia ser teu companheiro filosófico e meu amante.
Nesta atmosfera verde, de possibilidades de outras cores infinitas,
descubro o afecto do negro.
(p.107)

e, mais à frente, esse afecto do negro que pode ser símbolo de uma espécie de sofrimento, parece ser especificado por um dos últimos símbolos da história da casa, o lenço da noite:

Apanho lenço contemplando o sangue e as lágrimas que se esboçam nas dobras e secam sob o calor da noite,     que a noite exala. Sob o lenço da noite, sei que me oriento para o círculo do beijo que a jovem deposita na testa de meu pai___________ um Rei qualquer de papel.
_______________ e sofro, com receio de que o vento sopre, e leve o lenço onde eu me destino a ser semente de um outro Eu que ninguém delimita ou guarda.
(p.111)

como vemos, desafiando a percepção do tempo, a história termina quando o Eu está para nascer naquela casa.

Quase no final do livro, encontramos ainda um surpreendente texto, que surge de uma forma muito orgânica a todas as questões do livro, e que se prende com a própria escrita.
Grande parte dos poetas escrevem, a certa altura, a sua "arte poética", que é a sua explicação de como escrevem, de como fazem a sua poesia. Os prosadores também o fazem, senão nos próprios livros, muitas vezes em entrevista.
Este texto será uma das mais belas, mais complexas e mais completas explicações de como nasce e se transforma o texto de Maria Gabriela Llansol, em que as regras são constantemente redefinidas, tornando-se esse desvio uma nova regra:


Cada vez está mais vento, com mutações de Sol excessivas para os meus olhos que agora, com o ar, o sol e a cor, se fatigam. Eu explico. Trabalho muito com eles, fixando intensamente um ponto-paisagem antes de começar a escrever; depois, o decurso do texto depende do que essa concentração, num lugar vazio, permite. O olhar atento vai voltando a si mesmo e, então, o queeu consigo ouvir são as ondulações vibratórias entre esses dois pontos. Os meus olhos recebem, num ponto-voraz, as linhas que sustentam o espaço, feixes incidentes paralelos, raios que se afastam progressivamente, termos geométricos.
Lá onde estás, deve ser assim.
Nunca olhes o bordos de um texto. Tens que começar numa palavra. Numa palavra qualquer se conta. Mas, no ponto-voraz, surgem fugazes as imagens. Também lhes chamo figuras. Não ligues excessivamente ao sentido. A maior parte das vezes, é impostura da língua. Vou, finalmente, soletrar-te as imagens deste texto, antes que meus olhos se fatiguem. O milionésimo sentido da voz, "tiro o lápis da mão", o gesto de partir a luz, o pensamento de uma criança, cópias da noite, passeio nocturno, "era um dia verde", o afecto do negro, sob o lenço da noite. O indizível é feito de mim mesma, Gabi, agarrada ao silêncio que elas representam.
(pp. 112,113)

Algumas figuras de 'Um Beijo Dado Mais Tarde' (1990) de Maria Gabriela Llansol


'Jovem Vestindo o Seu Jardim'


'Témia'


'A Estátua de Leitura' (Ana ensinando a ler a Myriam)

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Meditação


Começo uma coisa inteiramente nova como uma clareira.
Deixei incompleta a voz mesmo no centro
mas o centro já está tão cheio de folhas
de hoje e de todos os tempos
que em coro anseiam por este momento em espiral
como um búzio de som, um ouvido
e o olhar que lhes dê vida em todos os poros.

Rosa Alice Branco
Monadologia Breve
1991, ed. Limiar
pintura de Mark Rothko