segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Les Amours Imaginaires de Xavier Dolan

SWEET DREAMS ARE MADE OF THIS



Se há assuntos verdadeiramente inesgotáveis, eles são a mente humana e as relações humanas. Isto é uma conclusão a que podemos chegar pelo simples facto de, em arte, raramente encontrarmos outros assuntos. E se partirmos do princípio que a mente é quem dita as relações, então nem sequer há assuntos inesgotáveis; há apenas um, sobre o qual se discorre, se deriva, se discute, arranjando novos pontos de vista, discussões, contrariando muitas vezes o que foi dito e feito no passado para, no final, ficarmos na mesma: temos um ponto de vista que, muito provavelmente, acabará por ser refutado mais à frente. Mas há maneiras de contornar o rápido envelhecimento das sentenças que se lançam sobre o assunto das relações humanas.

Uma delas, e, até prova em contrário, a escolhida por Xavier Dolan, é dar aos objectos artísticos um cunho declaradamente pessoal e íntimo em que o criador se desinteressa de julgar, e prefere colocar-nos ante hipóteses, casos particulares.






Era assim com o assinalável "J'Ai Tué Ma Mère", de que falei há poucos dias; e volta a ser assim com "Les Amours Imaginaires", que Dolan realizou o ano passado ou seja, um ano depois do primeiro.

Uma das coisas que assinalei, ao falar do filme de estreia do realizador, foi a questão da sexualidade que, em "J'Ai Tué Ma Mère" se afigurava um tanto ao quanto lírica e adolescente.

Interessa pensar-se na questão da sexualidade pois ela, ao contrário de no primeiro filme, o assunto central deste "Les Amours Imaginaires".

A história é a de dois amigos, Francis (Xavier Dolan) e Marie (Monia Chokrie), que se apaixonam pelo mesmo rapaz, Nicolas (Niels Schneider). Ao passo que a relação entre os dois amigos vai começando a transformar-se, já que ambos, ainda que timidamente, se sentem apaixonados; é muito claro que Nicolas não tem sentimentos alguns por nenhum dos dois -ainda que chegue a dizer que sim-, ficando sempre na posição de alguém que gosta que gostem de si. Dado a sinais dúbios, a insinuações que não redundam em nada, Nicolas consegue, mesmo assim, ser seguido pelos dois amigos, que, como seria de esperar, acabam por se virar um contra o outro, ainda que de uma forma só brevemente agressiva.

Tanto Marie como Francis se nos afiguram como pessoas solitárias e tímidas, um tanto fadadas para a desgraça da rejeição; ideia que é reforçada pelos planos que entrecortam o filme, em que várias pessoas contam, precisamente, histórias de rejeição.

E assim o filme vai passando.

Eu penso que "Les Amours Imaginaires" pode ser dividido em dois campos distintos:

O primeiro seria o da construção dos personagens, em si. Esse está irrepreensível. Dolan, que já antes se mostrara um argumentista muito capaz, consegue aqui criar três personagens consistentes, sabendo distribuir a informação que sobre eles recebemos, e sabendo, mais ainda, jogar com uma espécie de cheio e vazio: vai-nos dando sempre novas informações sobre a vida e a personalidade de Marie e de Francis; ao passo que pouco nos vai dando sobre Nicolas, conseguindo, assim, dar-nos o contraste entre a riqueza de personagens que sentem e o personagem narcisista, que nada tem a dar, excepto a expectativa de ser adorado. Xavier Dolan é, sem dúvida, um bom cinzelador de seres humanos, e essa é uma qualidade rara; os seus personagens têm a consistência de um corpo verdadeiro.

O segundo campo seria o da relação triangular que se sugere. E aqui mesmo é que "Les Amours Imaginaires" começa a falhar. De facto, era importante que houvesse uma certa frieza entre os três personagens, já que o amor que as une é, acima de tudo, imaginário. E nisso, o filme está bem conseguido: conseguimos ver o desespero e o delírio tanto de Marie como de Francis, quando não estão com Nicolas. É importante que esse lado de uma quase fuga à realidade exista e seja claro, porque, no fundo, o amor que ambos sentem por Nicolas só tem concretização no domínio dos sonhos, um pouco como o título da famosa canção dos Eurythmics.

Mas, nas cenas em que estão os três, o contacto entre eles não consegue, pura e simplesmente, transparecer a complexidade da situação em que estão envolvidos, parecendo que a abordagem escolhida por Xavier Dolan não ultrapassa os anátemas da adolescência. É esse o defeito maior de "Les Amours Imaginaires", não conseguir, quando o triângulo surge, ir muito além do mais básico. A este nível, a única situação realmente bem conseguida é o final do filme, onde o argumento consegue surpreender-nos com uma solução lógica mas bastante subtil.

O tratamento um tanto impreparado da sexualidade pode parecer estranho, dada a mestria com que Dolan consegue construir as suas personagens, mas, de facto, este é talvez o assunto mais complexo de todos e aqui, deixa um pouco a desejar.




Fora isto, "Les Amours Imaginaires" não tem que se lhe aponte. Mostra uma realização bem mais minuciosa e inteligente do que "J'Ai Tué Ma Mère" que, por si, já não estava mal realizado. Dolan tem o olhar treinado para os detalhes, tanto nas personagens, como nos cenários e no espaço ou no guarda-roupa; continua a preferir os ambientes carregados suburbanos, criando à volta das personagens uma certa noção de isolamento, muito conveniente quando estamos perante pessoas que se sentem um tanto perdidas. Destaco também a banda sonora, onde ouvimos várias vezes, e não sem uma certa ironia, a versão de Dalida do "Bang Bang" de Nancy Sinatra.

Se este filme é ou não melhor que "J'Ai Tué Ma Mère" é uma questão que nos pode ocorrer, mas que no fundo é irrelevante, por mais que seja respondida. Acima de tudo, o conjunto dos dois filmes dá-nos noção de um projecto artístico interessantíssimo e fecundo. E nos dias de hoje, isso vai-se tornando perigosamente raro.


Sem comentários: