segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Agustina Bessa-Luís: A Ronda da Noite

DO PODER, DO REAL E DA FUGA A ELES

Foi em 2006 que se editou o último romance de Agustina Bessa-Luís, "A Ronda da Noite" (ed. Guimarães), que se segue a "Doidos e Amantes" (2005).
Não é a primeira vez que Agustina se debruça sobre as artes plásticas para desenvolver uma história e, desta vez, a escolha não podia ser mais interessante: trata-se do polémico "A Companhia do Capitão Banning Cocq" de Rembrandt, mais conhecido pelo nome que Agustina escolheu para o seu romance. É uma das obras mais controversas de Rembrandt, que já deu origem a inúmeros ensaios e até a um filme de Peter Greenaway.
Neste romance, encontramos a família Nabasco que, ao longo de gerações, nas suas várias casas, possui uma falsificação em tamanho real da Ronda da Noite, que vai ocupando sempre um lugar à-parte entre os pertences da família. Martinho Nabasco é um rapaz singular, uma espécie de mutante, criado pela avó Maria Rosa: desde criança, ele adoece facilmente, manifesta de forma estranha os seus afectos que são, por si só, também estranhos, e o seu maior interesse parece ser mesmo a Ronda. Apesar de ser um rapaz inapto para a vida prática e para a vida sentimental, Martinho demonstra capacidades analíticas e intelectuais desde cedo, um pouco espicaçado pela inteligência altiva e por vezes contraditória de Maria Rosa, a sua principal interlocutora. É de Maria Rosa, que vai dispensando sempre alguma atenção à Ronda, que parte a ideia que o quadro possa mesmo ser o verdadeiro. Na impossibilidade de se confirmar esta teoria, todos parecem aceitar que, pelo menos, aquela reprodução teria vindo do atlier do próprio Rembrandt.
A apatia de Martinho é posta em causa quando Maria Rosa decide adoptar Judite, para viver lá em casa. Judite é uma rapariga de doze anos, cujo pai terá assassinado a mãe por causa de um arrufo conjugal. Judite passa a ser criada com os Nabasco e, por fim, Maria Rosa consegue casá-la com Martinho. O casamento, que não dá filhos, é vivido por ambos com uma certa dose de alienação, ao ponto de uma quase indiferença, e acaba por fracassar. Quando Judite se apaixona por Manuel Andrade, Martinho sente alguma raiva e algum desgosto, sem, no entanto, sentir que ama a mulher especialmente. O caso acaba por ser esquecido e o casal regressa à sua vida de parco contacto amoroso. No entanto, no meio da confusão, Martinho acaba por considerar uma hipótese que havia sido colocada pelas empregadas da casa, aquando da vinda de Judite: a teoria de que teria sido ela, e não o pai, a assassinar a mãe, Estrelinha Sopa-de-Massa.
Mas é principalmente através da Ronda que Martinho percebe aquilo que se passa na casa dos Nabasco, que primeiro é a Casa do Cão e depois o Torreão Vermelho, em Águas Santas. E aqui se entende um pouco a estranheza de Martinho: ele não é capaz de se relacionar directamente com a realidade, precisa sempre de a fazer passar pela Ronda, a sua mais antiga paixão, para poder entendê-la. É isso que o torna tão especial na sua indefinição: porque Martinho é, acima de tudo, uma pessoa indefinida, em todos os aspectos, excepto enquanto ser intelectual. É essa intelectualidade tão particular que faz com que, cada vez mais, Martinho vá projectando a vida para a Ronda da Noite, acabando por se isolar da vida propriamente dita e das pessoas.
Na maneira como Agustina escreve esta história, é essencial a questão do ritmo: "A Ronda da Noite" parece viver de uma espécie de narrativa interrompida, pois a acção vai-se desenvolvendo com alguma velocidade, mas a sua narração é interrompida frequentemente para nos dar acesso às análises de Martinho: assim tomamos consciência da maneira como ele, o mutante, experiencia os acontecimentos, como que retirando-se deles para poder pensá-los, concretamente através das minuciosas observações da reprodução de Rembrandt. Mais ainda, nota-se neste livro de Agustina uma tendência para escrever como quem pinta, com uma pincelada que em muito nos faz lembrar a do próprio Rembrandt, carregada de sombras significativas, de contrastes garridos e até de uma certa ambivalência em relação àquilo que é mostrado. Porque essa é uma das questões mais prementes em "A Ronda da Noite": as diferenças entre o que é verdadeiro e o que é mostrado; sabendo que sempre que no que é mostrado continua a haver algo de verdadeiro, ainda que esse "verdadeiro" possa pertencer apenas à imagem, e não à verdade dos factos.
A questão do poder também aqui está presente, como na maioria, senão na totalidade, dos livros de Agustina. No quadro de Rembrandt, o poder de Banning Cocq está na iminência de ser desobedecido; ou, numa outra teoria, apenas aparenta ser poder, quando, na verdade, a pintura retrata uma festa. Pelo meio desta dúbia manifestação política, encontramos a pequena Saskia, num vestido claro, com uma galinha e uma pistola penduradas na cintura. Se Judite parece representar Saskia no seio da família Nabasco, também é certo que o interesse particular de Martinho pela Ronda parece evidenciar-nos que ele está à margem das hierarquias estabelecidas na sua família, mesmo que inintencionalmente, mas por condição, a sua condição de mutante. Assim nos parece lógico que essa figura que parece existir à revelia do poder, Saskia, seja, na verdade, a esposa de Martinho. E, numa história em que o poder é omnipresente, ainda que surja sempre de forma subliminar, não deixa de nos parecer sintomático que o personagem extraviado da realidade desse poder seja precisamente aquele que se interessa mais por analisar a pintura onde tudo está representado: ele é aquele que está de fora, dialogante, sim, mas com um elemento em que não está realmente inserido.


O final do livro, que não dispensa uma forte tragicidade, vem comprovar a relação quase simbiótica de Martinho com a Ronda, sendo que, nessa simbiose está todo um modo de vida -baseado numa fuga ao real- que, uma vez eliminado, acaba por destruir Martinho.
Romance onde lemos ainda a ironia aguçada do costume, "A Ronda da Noite" é um livro muitíssimo forte, aberto a muitíssimos diálogos, diálogos esses que, em muito, passam pela realidade dos dias de hoje. E, assim, funciona este livro para a realidade actual como funciona a Ronda para Martinho Nabasco.

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