quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Biophilia

Com lançamento previsto para 27 de Setembro deste ano, 'Biophilia' é o sétimo álbum de originais de Björk, e, pelo que pudemos já ver dele -e não foi pouco- pode muito bem tratar-se de um dos álbuns mais complexos e experimentais duma cantora que nunca foi simples. Acompanhado de um ambicioso projecto multimedia, continuando o lado visual que acompanhou sempre o trabalho de Björk, 'Biophilia' explora a teoria da biofilia, que defende que há uma ligação instrínseca e nata entre o Homem e os restantes sistemas biológicos. Assim, as canções contam com referências aos mais variados fenómenos naturais que, está prometido, poderemos ver com mais detalhe nos vídeos das canções -e haverá um vídeo para cada uma. Pelas amostras entretanto chegadas a nós, Crystalline, Virus e Cosmogony, o facto é o que álbum promete. Se podemos dizer que na música de Björk houve sempre um interesse fágico pela natureza, principalmente desde 'Medulla' (2003), é caso para pensar que esse interesse tomou agora as rédeas da criação. O projecto é ambicioso, mas miss Gudmundsdottir sempre deu mostras de estar à altura de qualquer projecto. Ficamos à espera, e já não falta muito, felizmente. Teremos novo concerto em Portugal, para 2012? Esperemos que sim, esperemos que sim.
Aqui abaixo, ficam Virus, Moon (As outras duas já foram aqui postadas anteriormente.):






Hellraiser IV: Bloodline

CIRCO EM TRÊS SÉCULOS

Quando em 2002 a estupidez mórbida das sequelas para 'Friday the 13th' levava Jason Vorhees para o Espaço, eu achei que a ideia era ainda mais estúpida do que o costume. Descobri, ontem, que a ideia não era nova.

Isto porque 'Hellraiser IV: Bloodline', realizado em 1996, já cometera essa proeza cómica de levar os heróis-assassinos da sua mitologia para o Espaço. Dado que o início desta quarta parte de 'Hellraiser' começa numa nave espacial, a minha disposição a ver o filme esteve sempre, desde o início, mais inclinada para o achar uma comédia mais do que outra coisa qualquer. Por isso, talvez este comentário fique afectado por um certo cepticismo.
Peter Atkins é o argumentista desta sequela, tal como havia sido de 'Hellraiser II: Hellbound' e 'Hellraiser III: Hell on Earth'. A primeira ideia que nos pode ocorrer quando nos encontramos perante uma nave espacial no ano de 2127 é que Atkins estava desesperado por inovar as suas explorações do universo originado por Clive Barker. Parece ter-se tornado o último recurso de todos os autores de sequelas virarem-se para a tecnologia quando esgotam todas as ideias em relação aos temas que trabalham: isso explica o acima referido 'Jason X' que também decorre a bordo duma nave e, de certa forma, acontece um pouco a mesma coisa com o vergonhoso 'Halloween: Ressurrection' onde Michael Myers embarca numa aventura on-line. O que acontece é que, em todos estes casos, essa tentativa de 'modernização' não é capaz de esconder o desespero que a origina, resultando como algo de inusitado, pobre, gratuito e com o seu quê de ridículo.
A outra ideia que é aqui acrescentada a 'Hellraiser' é a da origem da caixa-puzzle que abre as portas do Inferno. Portanto, e há que notá-lo, 'Hellraiser IV: Bloodline', seguindo as várias gerações da família Merchant, desde o século XVIII até ao futuro, acaba por funcionar como sequela de 'Hellraiser', claro, mas também como prequela, pois, afinal, mostra-nos a origem da caixa que é o móbil desta saga.
Paul Merchant (Bruce Ramsey) é um cientista, no ano de 2127, que construiu uma base naval espacial que agora usurpa e dentro da qual se sequestra. Na sequência disto, a nave é invadida pela polícia, que o prende. É então ao ser interrogado por Rimmer (Christine Harnos), ele conta a história da sua família: no século XVIII, Phillipe Le Merchant (Ramsey também) construíra uma caixa-puzzle para um homem da nobreza que vivia obcecado com magia negra e com fantasias sado-masoquistas.
Depois de entregar a caixa ao seu dono, Phillipe percebe que, na verdade, a sua criação abre as portas para o Inferno, e empenha-se em construir uma outra caixa que funcione como uma divisa para fechar essas portas. No entanto, morre antes de conseguir executar o seu projecto. Do inferno, entretanto, saíra uma rapariga, Angelique (Valentina Vargas), que acaba por assassinar o seu mestre.
Duzentos anos depois, ou seja, no século XX, John Merchant (Ramsey, uma vez mais.) é um arquitecto bem-sucedido, mas atormentado por uma série de sonhos vívidos em que vê Angelique, que o chama. Por volta desta altura, John está a inaugurar o edifício baseado na caixa-puzzle, que vemos, aliás, no final de 'Hellraiser III'. O seu projecto seria ainda construir um outro edifício baseado no desenho do seu antepassado Phillipe, que é, na verdade, o projecto da caixa que fecha as portas do inferno. No entanto, cruza-se com Angelique que acaba por deixar John à mercê dos Cenobites, que, agora, querem caminhar livremente pela Terra, sem terem necessidade de serem convocados pela caixa original.
Joe Chappelle é o realizador deste filme. Foi, claro, um grande desgosto para mim descobrir que um dos realizadores e produtores de uma das minhas séries preferidas, 'Fringe', é, na verdade, o realizador desta película, tal como havia realizado 'Halloween: The Curse of Michael Myers', uma das mais inusitadas e confusas sequelas do filme de John Carpenter. Dizia eu que foi um desgosto porque, para todos os efeitos, não sobra grande espaço para dúvidas de que 'Hellraiser IV' é um mau filme. A começar pelo desespero de causa que leva a história para o Espaço, mas passando um pouco por tudo o que acontece aqui. Porque, em termos de realização, Chappelle nunca vai além daquilo que seria o mais básico. Acontece isso com as cenas passadas no século XVIII, que mais previsíveis não podiam ser; e mesmo durante as cenas passadas no tempo actual, não encontramos nada de inesperado.

'Hellraiser IV' também continua uma das piores coisas de 'Hellraiser III', que era a tentativa de invenção de novos Cenobites. Uma vez mais encontramos uma série de Cenobites secundários, sendo que, com excepção de Pinhead, não há nenhum que cause impacto real, por mais que possam ter uma imagem tortuosa. Porque esta tortura nos parece algo de excessivo, de claramente ficcional, e que não é capaz da verosimilhança daquilo que víramos no filme original.
Também de 'Hellraiser III' nos vem outra ideia parva, que é a da vontade gratuita dos Cenobites de matar e torturar, que continua a contrariar o conceito de Clive Barker, para o substituir por um outro bastante vulgar. Pela primeira vez, no entanto, nesta saga, temos um filme em que não nos aparece um 'esfolado'. Essa foi uma boa ideia. O 'esfolado' era uma coisa forte, mas que não se justificava ter repetido depois do original, e finalmente acontece assim. A ideia de uma 'princesa do Mal' mantém-se, desta vez na figura de Angelique que, mesmo assim, não tem o carisma da Julia dos primeiros dois filmes.
A cena em que John, o arquitecto, consegue dar forma à porta para fechar o inferno está particularmente mal-feita, porque parece ter sido escrita e realizada 'em cima do joelho', ficando a faltar muita explicação e muita verosimilhança.
Por fim, as cenas passadas na nave espacial, são as piores de todas, porque, além da predicabilidade das cenas de perseguição, todas as outras são tão forçadas e tão excessivamente teatrais, que mais não parecem do que uma paródia de 'Hellraiser', feita ainda por cima sem grande convicção.
Depois de uma sequela como 'Hellraiser III: Hell on Earth', outra como esta vem comprovar aquela ideia de que é sempre possível fazer pior e, neste ponto, a saga de 'Hellraiser' caminha a passos muito largos para se tornar, pior que uma repetição, uma adaptação circense de si mesma.


[foram breves e medonhas as noites de amor]


foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração

AL BERTO
O Medo
1997, ed. Assírio e Alvim

imagem de ISABEL DE SÁ

Hellraiser III: Hell on Earth de Anthony Hickox

ADULTERAÇÕES E CLICHÉS

Quando aqui falei do 'Hellraiser' original de Clive Barker, falei da questão do moralismo, uma tónica que atravessava discretamente todo o filme, e que poderia remeter-nos para a origem católica da ideia do inferno. Clive Barker soube ser inteligente ao incluir esta questão no seu filme.
O argumento desta terceira parte está entregue a Tony Randel e a Peter Atkins, sendo que o primeiro foi realizador da segunda parte e o segundo, argumentista da mesma. Por assim dizer, temos nestes dois senhores dois verdadeiros fãs da saga de 'Hellraiser'. E talvez o problema seja precisamente esse. Um certo fanatismo da parte dos autores da história pode explicar uma grande falta de sentido crítico que se faz sentir em 'Hellraiser III: Hell on Earth'.
O filme começa com JP (Kevin Bernhardt) a comprar uma enorme estátua, onde, entre outros motivos grotescos e facilmente associáveis às representações do Purgatório, encontramos a cabeça de Pinhead e a caixa-puzzle de acesso ao inferno.
Depois, encontramos Joey (Terry Farrell), uma jornalista com dificuldades em singrar no meio, por falta de boas histórias para contar. Depois de uma reportagem falhada num hospital, pouco antes de daí sair, Joey vê entrar um rapaz completamente ensanguentado, com correntes presas ao corpo por ganchos, acompanhado de uma prostituta assustada. Em poucos segundos, o corpo do rapaz é estraçalhado, quando as correntes são puxadas por algo de invisível. A única coisa que Joey consegue arrancar da prostituta que mal pode esperar por fugir dali, é que vieram de um bar chamado Boiler Room. Entusiasmada com a possibilidade de arrancar dali uma história, Joey consegue contactar a prostituta, Terri (Paula Marshall), dando-lhe guarida na sua casa. Terri explica-lhe que as correntes teriam saído de dentro da caixa-puzzle, que havia sido arrancada da estátua comprada por JP, o dono do Boiler Room e ex-namorado de Terri. E assim as duas vão em busca de pistas sobre a estátua, acabando por, através do Channard Institute (Presume-se que em referência ao psiquiatra do segundo filme, que havia reunido um considerável espólio sobre a Configuração do Lamento.), conseguir uma cassete de vídeo com algumas consultas de Kirsty Cotton (Ashley Laurence), onde ela fala dos Cenobites. É assim que Joey toma consciência da verdadeira natureza da estátua e da caixa-puzzle.
No quarto privado de JP no Boiler Room, a estátua ganha vida e devora uma rapariga com quem ele acabara de ter sexo. E Pinhead, cuja cabeça consegue já mexer-se e falar, pede ajuda a JP para se libertar daquele bloco escultórico. JP acede. Por fim, Joey é visitada num sonho/visão por Elliot Spencer (Doug Bradley), o soldado que se havia tornado Pinhead. Ele explica-lhe que quando Kirsty o confrontara com a sua verdadeira origem, ele e Pinhead se haviam tornado seres separados e que, em consequência, Pinhead se tornara num ser puramente maligno, cujo único interesse seria torturar a humanidade. E assim encarrega Joey de encontrar Pinhead, entretanto libertado da estátua, para que Elliot possa voltar a unir-se com ele e contrabalançá-lo, forçando-o a entrar definitivamente para o inferno.
O que nós vemos acontecer nestes filmes, como um padrão, é que cada um insere alterações no próprio conceito que definia o primeiro filme. No anterior, os Cenobites eram humanizados, neste, isso separou-os dos seus lados humanos, mudando-lhes o objectivo. Estes Cenobites já não estão no inferno, à espera de serem convocados pela caixa-puzzle para torturarem aqueles que a abrem. Estes Cenobites querem, isso sim, viver no mundo real, para torturarem e matarem toda a gente. Logo aqui, o conceito de Barker fica completamente adulterado. E, mais do que adulterado, é completamente vulgarizado. Porque o que havia de interessante na ideia de Barker era que este Inferno era um lugar procurado e os Cenobites eram os anjos ou os demónios daqueles que os convocavam. Neste filme, eles tornam-se personagens que torturam desenfreadamente, por prazer exclusivamente seu, quando, nos primeiros dois filmes, esse prazer era de alguma forma partilhado por aqueles que eram torturados -já que é isso que, em princípio, define o sadomasoquismo.
Outra coisa que importa referir é que Clive Barker, com as suas quatro figuras horripilantes e fortes, criara uma espécie de panteão do mal. Ora, com excepção de Pinhead, todos os outros Cenobites desaparecem deste filme, dando lugar a outros. A ideia poderia ser uma ampliação dessa mitologia, mas resulta apenas numa substituição, que, de certa forma, quebra um pouco com a continuidade da saga. É, portanto, uma renovação excessiva, que resulta tanto pior quanto os novos Cenobites quase não têm existência, aparecendo apenas brevemente e sem grande impacto. Além disso, estes novos Cenobites tornaram-se Cenobites sem querer, o que também contraria o segundo filme, em que o novo demónio, o Cirurgião, entrava na Configuração do Lamento com o objectivo específico de se tornar um Cenobite.
Quanto a alterações conceptuais, estamos falados: elas são estas e não resultam.

Mas o resto não corre melhor. O argumento é um tanto pobre, já que é um absoluto cliché a ideia da jornalista a enveredar por uma história maligna, que orienta toda a premissa. Mais ainda, a ideia de moralismo aqui ganha contornos distintos dos do filme original, tornando-se, também ela, a mais óbvia que se podia esperar: os assassinados por Pinhead são a vadia, o grande sacana e os frequentadores do bar de engate. Esta ideia da punição dos prazeres do sexo surge-nos aqui com uma aborrecida predicabilidade, por ser tão declarada, já que é sexo em si que é punido, e não a procura excessiva de prazer que ignora limites, como acontecia no 'Hellraiser' original.
Os diálogos, por fim, procuram uma certa contundência que é conseguida em alguns, raros, momentos do filme, mas fora isso, pecam pela falta de naturalidade e por uma tentativa de, em muito pouco tempo, definirem imediatamente as personagens, o que nunca é uma boa fórmula para coisa nenhuma.
Anthony Hickox revela-se um realizador de poucas ideias, também. As suas concepções visuais não nos trazem nada de novo, mesmo quando se nota claramente o esforço de criar cenas fortes e gore. É exemplo disso a grande tortura de Pinhead no Boiler Room, onde o massacre geral é entrecortado por planos de detalhe da tortura de cada um: os primeiros são reminiscentes do clímax de 'Carrie' (1976) de Brian de Palma, e os segundos aludem muito claramente aos primeiros dois 'Hellraiser'. No resto, é uma realização vulgaríssima, onde as cenas de perseguição são tudo o que se espera de uma cena de perseguição, e as restantes cenas são filmadas com a falta de convicção de qualquer telenovela. Os novos Cenobites parecem ter sido caracterizados com alguma minúcia, mas o pouco ênfase que lhes é dado acaba por anular este esforço. A direcção de actores parece ser normal, até que chegam os momentos de maior tensão, em que, na verdade, a maioria dos actores fica muito aquém.
Uma vez mais, há que reconhecer veracidade à ideia geral que se tem sobre sequelas. O melhor era mesmo não as ter feito.


segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Hélia Correia: A Compaixão

AS FORÇAS INVISÍVEIS


No livro de "Contos" de Hélia Correia, editado em 2008, encontramos um texto que, percebemos, se aproxima mais da novela do que do conto. "A Compaixão", assim se chama esse texto, merece, de alguma forma, ser isolado dos restantes contos do livro, não só por uma questão de extensão -mais de 50 páginas -como também porque é um texto realmente muito forte e muito específico -mesmo num conjunto de apenas 6 textos, em que todos são auto-suficientes e obedecem a especificidades, ao mesmo tempo que são unidos, tal como "A Compaixão", por determinadas características, que são linhas-mestras da escrita de Hélia Correia.
"A Compaixão" que, ao que entendo, terá sido escrita mais ou menos na mesma altura que "Lillias Fraser" (2001), um dos melhores romances da literatura portuguesa contemporânea e, como lemos na nota final do livro de contos, andou perdia durante algum tempo. Conta-nos a história de Regina, uma rapariga que, numa crise do seu casamento se vai refugiar a uma estalagem em Espanha. Nessa noite, a electricidade falha e Regina acaba por se cortar numa mão. Para estancar a hemorragia, ela pega num lenço de pano-cru. Regressando a Lisboa, Regina começa a adoecer, sofrendo hemorragias internas, delírios e dando sinais de neurastenia e de uma inércia doentia. Enquanto é rodeada pela tia e a mãe e pelo ex-marido, Filipe, Regina percebe que a origem dos seus inexplicáveis sintomas está no momento em que limpara a ferida da mão com o pano encontrado na estalagem. Na segunda parte da novela, Regina e Filipe regressam a Espanha, à estalagem, a fim de descobrirem a possível história daquele pano e também de o restituir ao armário onde ele estava originalmente guardado. E assim se cruzam com a história da casa da estalagem e das duas mulheres -uma a viver ali, outra a viver em Portugal- que a haviam habitado.
Esta novela, apesar da decisão da autora de não a publicar autonomamente, pode muito bem estar no mesmo patamar que outras, como "O Número dos Vivos" (1982), "Montedemo" (1984) ou "Bastardia" (2005), que são alguns dos textos que afirmaram e confirmaram Hélia Correia como uma das mais originais e mais poéticas prosadoras da nossa literatura. Neste texto, como na maioria dos de Hélia, encontramos, para começar uma linguagem densa, cuja construção minuciosa conjuga o poder das imagens com o das palavras e da sua musicalidade, criando um jogo entre a escrita e o conteúdo em que um é indestrinçável do outro.
Em "A Compaixão", voltamos também a sentir algumas das obsessões da escrita de Hélia Correia, obsessões que passam pelo sangue, pela visceralidade, por uma treva que tenta não ser desvendada: há nesta escrita uma certa fascinação pelo grotesco e pela violência, que pautam a relação das pessoas (Que são pessoas mais do que personagens.) com o mundo.

Mas a chave dos livros de Hélia Correia está frequentemente, e isso volta a acontecer em "A Compaixão", nalgo de invisível e de quase-indizível. Notamos aqui uma espécie de força espiritual, que passa da casa da estalagem para o pano e do pano para Regina, através do sangue. É essa força, que tem a leveza e o poder de uma premonição, ou de um pressentimento, que realmente move Regina ao longo do texto, e também aqueles que a rodeiam. Aquilo que é sentido é aquilo que é perseguido, contra todas as racionalizações e todas as lógicas mais imediatas.
E essa força existe não só nas pessoas, como no próprio espaço -um pouco o que acontecia na novela "Villa Celeste" (1983) ou no romance "A Casa Eterna" (1991). E no reconhecimento da existência dessa força, bem como na atenção que lhe é dada em consequência, está uma boa parte da estranheza da escrita de Hélia Correia, e, claro da novela de que aqui falo. Porque estes textos, magistralmente escritos, conduzem-nos através de algo que nunca podemos verdadeiramente compreender, algo que será explicado, mas não totalmente explicado, mesmo depois do livro ter terminado. E é por isso que estes textos continuam, depois de terminados, precisamente.

Monna Innominata


10.

"Con mighor corso e con mighore stella." — Dante
"La vita fuggc e non s'arresta un' ora." — Petrarca

Time flies, hope flags, life plies a wearied wing;
Death following hard on life gains ground apace;
Faith runs with each and rears an eager face,
Outruns the rest, makes light of everything,
Spurns earth, and still finds breath to pray and sing;
While love ahead of all uplifts his praise,
Still asks for grace and still gives thanks for grace,
Content with all day brings and night will bring.
Life wanes; and when love folds his wings above
Tired hope, and less we feel his conscious pulse,
Let us go fall asleep, dear friend, in peace:
A little while, and age and sorrow cease;
A little while, and life reborn annuls
Loss and decay and death, and all is love.


CHRISTINA ROSSETTI

A Pageant and other poems

1881

pintura de SIMEON SOLOMON

Outra vez sobre Christina Rossetti


Rossetti escreve, então, a um tempo, de acordo e contra a tradição de versos sentimentais ‘femininos’. Partilhando dos temas do amor e da perda das suas predecessoras, ela lida com eles com um sentido de ironia e de objectividade. As líricas de Rossetti falam tanto de uma reservada emotividade face à perda, como falam do sofrimento. Nas suas mãos, a palavra ‘eu’ começa a parecer menos um espelho do que uma máscara.

KATHERINE McGOWRAN
excerto da introdução de "Selected Poems of Christina Rossetti"
2001, ed. Wordsworth Poetry Library

tradução de João Borges


domingo, 28 de agosto de 2011

Hellbound: Hellraiser 2 de Tony Randel

MUITA PRESSA E POUCO MAIS

Demorou um ano, apenas, até que se fizesse uma sequela para "Friday the 13th" de Sean S. Cunningham e também para "A Nightmare on Elm Street" de Wes Craven. Em ambos estes casos, as sequelas partiam com alguma distância em relação ao tempo do original. Não foi isso que aconteceu com a primeira sequela de "Halloween", realizada só três anos depois do original de John Carpenter, e que continuava a mesma noite desse original. Várias coisas diferenciam estas três sequelas, mas há uma que é lapidar: é que as primeiras duas eram lixo e a última era um filme de alguma relativa qualidade, apesar de ser este terceiro aquele que realmente se propunha um objectivo mais difícil, que era continuar a mesma situação que Carpenter filmara.
Também "Hellbound: Hellraiser 2" surge um ano depois de "Hellraiser", e também ele continua a mesma situação filmada por Clive Barker no primeiro filme. Mas, ao contrário do que acontecia com Rick Rosenthal quando realizou "Halloween II", Tony Randel não consegue, pura e simplesmente, dar uma continuação digna ao filme original. Eu penso que um filme, ao ser visto, levanta sempre alguma poeira, e, para o continuar, talvez seja uma atitude inteligente deixar essa poeira assentar, para se poder ver o filme com um olhar mais atento, que permita ver-se quais as pontas soltas que ele deixa e que podem ser continuadas na sequela em preparação. Esta foi, penso, a razão pela qual "Halloween II" conseguia não ser um insulto para "Halloween". E o facto de não se ter esperado um pouco para se fazerem as sequelas para "A Nightmare on Elm Street" e "Friday the 13th" terá sido o motivo pelo qual estas sequelas não são quase mais nada do que meras repetições dos originais, que não vêm acrescentar nada de realmente substancial aos filmes originais.
Nota-se que Tony Randel tentou escapar a este padrão quando em 1988 realizou o seu "Hellbound: Hellraiser 2". O filme começa com um curto segmento em que vemos um soldado (Doug Bradley) abrir a famosa caixa que abre as portas do inferno, e a ser levado para ele.
Depois, naquilo que representa um salto de muitos anos, encontramos Kirsty Cotton (Ashley Laurence), depois da casa da família ter ardido e do pai ter morrido, a ser interrogada pela polícia, num asilo psiquiátrico. Kirsty opta por contar a verdade, mas, como seria evidente, o polícia encarregado de a interrogar, não acredita; e fica mais convicto ainda do estado de loucura da rapariga quando ela insiste que o colchão onde a madrasta havia morrido deve ser destruído para evitar que ela regresse do inferno, como já regressara no primeiro filme o tio Frank.
O psiquiatra de Kirsty, o dr. Channard (Kenneth Cranham) também não parece acreditar na história da paciente, ainda que a ouça com bastante atenção. O único que, por alguma razão, suspeita que ela possa estar a dizer a verdade é Kyle (William Hope), o assistente do psiquiatra. As suas hesitações avolumam-se quando fala com Kirsty enquanto observam uma paciente muda, conhecida por Tiffany (Imogen Boorman), cuja única ocupação é resolver puzzles e enigmas.
Depois de ouvir uma conversa dúbia do dr. Channard, Kyle decide segui-lo até casa e, lá, encontra aquilo que parece ser um museu dedicado às caixas-puzzle de que Kirsty falara, além de um considerável acervo de imagens e artigos relacionados com a experiência paranormal de acesso ao inferno. É assim, também, que Kyle, escondido, assiste ao dr. Channard a deitar um paciente psicótico no colchão onde morrera a madrasta de Kirsty, Julia (Clare Higgings), que ali mesmo regressa à vida, completamente esfolada, a pedir ajuda para restituir o seu corpo.
Enquanto isso, Julia tem visões de um corpo esfolado que pede ajuda através de uma mensagem escrita a sangue na parede. Kyle ajuda-a a escapar do asilo, já que Julia está convencida que o homem que lhe aparecera era o pai, que estaria encurralado no inferno. Com a ajuda de Tiffany, as portas para o inferno são reabertas, e nele entram, por motivos completamente distintos, Julia, Kirsty, Tiffany e o dr. Channard. Este último, afinal, tinha por objectivo de vida experienciar esse inferno, onde, percebe-se, ele prentende ser um dos Cenobites, já que, afinal, a sua carreira como médico fora uma forma de sublimar uma forte tendência sádica.
Este inferno, em vez da sala de tortura que encontrávamos no filme original, apresenta-se-nos como um labirinto interminável cuja arquitectura não escapa a certas reminiscências bizantinas, em que as salas de tortura se sucedem umas às outras, organizadas numa malha reticular cujo centro é uma caixa-puzzle gigante que emana um feixe de escuridão. A demanda de Kirsty pelo pai acaba por se transformar numa desesperada tentativa de escapar aos Cenobites, que agora contam com mais um elemento, o Cirurgião, que é o dr. Channard depois da transformação.
Peter Atkins, ao escrever o argumento, parece ter tido algumas preocupações em não repetir necessariamente aquilo que encontrávamos no de Barker. Por assim dizer, ele tenta ampliar o conceito do inferno, que passaria a partir daqui a ser conhecido como Configuração do Lamento, mostrando-o como algo de pessoal (Cada um tem o seu, correspondente a uma ou mais salas.) e de interminável, tanto quanto mortífero. No entanto, a tentativa de dar uma história aos Cenobites, de os humanizar -Pinhead é, na realidade, o soldado que víamos no início -acaba por anular um pouco toda a ideia de pura maldade e de inferno que era muito determinante no primeiro filme. Por assim dizer, quase que o mal aqui é desculpado, quando, no primeiro filme, víamos que o mal era um prazer levado ao extremo.
E se nem o argumento se mostrava particularmente engenhoso em criar uma narrativa entusiasmante, e se o conceito começava bem mas depois era vulgarizado, a verdade é que Tony Randel, enquanto realizador, raramente consegue fazer de "Hellbound: Hellraiser 2" um bom filme.
Com uma sequência inicial bastante forte e grotesca, em que vemos a primeira tortura de Pinhead de uma forma que equilibra perfeitamente o mostrado e o sugerido; e com a arrepiante aparição no quarto do hospital, a verdade é que todo o restante filme não resulta. A concepção espacial da Configuração do Lamento é realmente muito interessante, com todas as características bizantinas em versão cinzenta e árida; mas tudo é estragado com o lugar-comum das salas iluminadas por velas que dão um aspecto previsível de ritual satânico, as cenas de perseguição revelam-se de uma impressionante pobreza de ideias, e as tentativas de mostrar como é o inferno daqueles personagens não vão além de uma mera assimilação de algumas imagens facilmente conotadas com o surrealismo, mas que têm pouco de criativo, e aquilo que o primeiro filme tinha de violento e de visceral, aqui não parece resultar como mais de que uma mera repetição da mesma coisa, mas com menos convicção e menos capacidade de tornar essas imagens verdadeiramente fortes.


E com isto volto à minha ideia inicial de que teria sido inteligente esperar um pouco até se fazer uma segunda parte de "Hellraiser". Porque a verdade é que este filme pega nalgumas linhas-mestras do primeiro e tenta inventar a partir delas, mas talvez fosse preciso conhecer-se essas linhas de uma forma mais profunda para se poder dar-lhes algo de novo e algo de conciso. Faz falta a este filme alguma densidade, alguma inteligência e muita força. Porque, no final, aquilo que percebemos é que pareceu que havia aqui algo de novo mas que, na verdade, não houve nada de especialmente novo. O argumento apresenta várias fragilidades, relacionadas acima de tudo com facilitismos, e a realização não passa da pretensão de causar estranheza e confusão e incómodo. Há aqui um esforço, mas há muito poucos logros.
Esta seria a primeira de sete sequelas para "Hellraiser", totalizando uma octalogia que é o meu programa para os próximos dias. A avaliar pela primeira continuação, este é mais um caso que vem confirmar o velho ditado que manda não mexer no que está quieto.


A Analogia das Folhas



13.
Alguém bate à porta de casa e, pelo ruído, pressinto que é com a mão que o está a fazer. Dirijo-me para lá e verifico que essa mão tinha atravessado -de uma maneira que, aliás, se diria inexplicável -a própria madeira da porta, como se, assim, quisesse estender-se para mim. Aproximo-me um pouco e verifico que ela se encontra ali efectivamente. Estremece ainda e, passados alguns instantes, acaba por ficar inclinada, imóvel. Não estou assustado. Há muito que pressentia que alguém viria ter comigo sem que, todavia, a sua presença implicasse que estivesse todo o seu corpo presente. Uma das suas partes, essa mão, poderia ser suficiente. E foi o que aconteceu. Abro a porta e, do outro lado, não encontro ninguém. Mas ao fechá-la verifico, agora com desalento, que a mão também já não existe.

FERNANDO GUIMARÃES
A Analogia das Folhas
1990, ed. Limiar

imagem: Objecto-Espelho de RUTE ROSAS

sábado, 27 de agosto de 2011

Hellraiser de Clive Barker

ENTRE O VÓMITO E O SUSTO


Com promessas de uma sequela para 2012, não podia deixar de ver a versão original de um dos clássicos do cinema de terror que tinha em falta. Falo do "Hellraiser" original, de 1987, realizado por Clive Barker, que havia publicado um ano antes o seu romance "The Hellbound Heart", a base do argumento deste filme.
No início vemos Frank (Sean Chapman) comprar a um marroquino uma caixa-puzzle, que, mais tarde, levará para um sótão, para proceder a uma espécie de ritual. Em consequência, Frank dá por si numa espécie de sala de tortura, cheia de objectos claramente ligados a práticas sado-masoquistas.
Algum tempo depois, Larry (Andrew Robinson) e a mulher, Julia (Clare Higgings) mudam-se para a mesma casa, já sem Kirsty (Ashley Laurence) que parece relutante em viver com a madrasta. Através das memórias de Julia, percebemos que ela teve um caso com o cunhado, por quem, de alguma forma, parece ainda muito apaixonada, procurando, pela casa, pequenos sinais de que Frank havia lá estado. Encontra bem mais do que isso, depois de Larry se corta numa mão e vai ter com ela para que o ajude a estancar a hemorragia.
Aparentemente, através daquele sangue derramado no soalho do sótão, Frank conseguiu regressar do inferno, onde estaria a ser torturado pelos Cenobites, mas precisa de mais sangue para conseguir um corpo completo. É assim que Julia, um tanto repugnada, mas sob a promessa de uma explicação, começa a engatar homens que leva para o sótão, a fim de que Frank os mate e os sugue até estarem completamente exangues. E assim, enquanto o seu corpo regenera, Frank explica a Julia que a sua busca algo desenfreada pelo prazer o conduzira à compra daquela caixa-puzzle que funciona como uma porta para um lugar do inferno onde os quatro Cenobites procedem a rituais que combinam, ao ponto do indistinguível, o prazer extremo com a dor extrema, o que, a certa altura, terá extenuado Frank, levando-o a tentar, com sucesso, escapar.
É este ambiente de grande insânia, de cruzamento entre o real e o mitológico que vive "Hellraiser". Sabemos que a origem do mito do inferno é o catolicismo; assim como sabemos que os mitos do catolicismo, contextualizados e descontextualizados, já muito têm sido usadas pela arte. No que toca ao cinema, o género de horror tem sido talvez aquele que mais se tem apropriado destes mitos para se sustentar. "Hellraiser" é um caso dúbio: por um lado, não parece haver no inferno aqui representado um cariz religioso, parecendo prender-se essencialmente com uma série de fantasmas sadomasoquistas, mais facilmente associáveis ao Marquês de Sade do que à bíblia. No entanto, um olhar mais atento descobrirá em "Hellraiser" um fundo religioso: quem de facto mais sofre com a abertura das portas desse inferno são Frank e Julia: ele um desenfreado perseguidor do prazer e ela uma mulher adúltera. Pode-se dizer que isto contribui para uma ideia de crime e castigo muito favorável às fantasias de s&m? Certamente. Mas o facto é que, discretamente, nos vão surgindo várias figuras religiosas, o que nos prova que este filme não escapa a uma tónica algo punitiva e moralista.
Outra das questões que me parece importante abordar acerca deste clássico é aquilo que distingue o horror do gore. É uma pergunta que convém fazer relativamente a muitos filmes do género que, umas vezes consciente, outras inconscientemente, acabam por esbater esses limites. "Hellraiser" é um desses casos. É facto que há aqui muitas cambiantes utilizadas por excelência como elementos de horror, mas a verdade é que o que de mais forte este filme tem passa essencialmente pela imagem: ou melhor, pelas imagens, a maioria delas de uma violência absolutamente vomitiva, ostentando elementos de amputação, de trucidação, de uma carnalidade sinistra em que o sofrimento não é experienciavel sem um tanto de orgulho e de prazer. Isto resulta, indubitavelmente, numa sensação de náusea muito mais que de medo, mas também, é convém não o escamotear, numa imagética forte e, em muitos aspectos, inesquecível. A prova disso é que as quatro figuras dos Cenobites, particularmente de Pinhead, se tornaram verdadeiramente icónicas, estando entre as mais emblemáticas personagens do cinema de horror, ao lado de outros galãs como Michael Myers ("Halloween") ou de Fred Krueger ("A Nightmare on Elm Street").


É com uma sensibilidade grotesca e repulsiva que Clive Barker consegue fortificar a narrativa de "Hellraiser" que, por mais que tenha laivos de uma certa originalidade, em muito não é mais do que uma mera situação de tentativa de salvação entrelaçada com alguma necrofilia.
A temática dos desvios sexuais, pois a questão sexual está subliminarmente presente em tudo, desde o conceito à imagética de "Hellraiser", já tem dado pano para mangas ao longo da história da arte; e para isso basta lembrar os livros seminais de Donatien Alphonse de Sade e de Leopold de Sacher-Masoch, mas também os poemas de Algernon Charles Swinburne, o famoso filme de Pier Paolo Pasolini, entre muitos outros exemplos. "Hellraiser" é de certeza mais um filho desta temática, e a verdade é que se tornou um clássico, que merece ser revisitado, mesmo que não se aprecie realmente tudo aquilo que aqui acontece.


segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Só descobri hoje (enfim)...

o blog, que funciona como uma espécie de diário, do projecto Ler Eduardo Loureço, que está, de momento, a organizar a edição das obras completas do filósofo e ensaísta.
Estamos a falar de um dos nomes que mais teorizou sobre a literatura (E não só.) portuguesa (E não só.) contemporânea (E não só.). Sorte a nossa, por daqui a algum tempo podermos ter acesso a textos que se encontram dispersos, ou então editados mas na sua maioria esgotados, que nos dão, sem sobra de dúvida, perspectivas lúcidas e insólitas sobre muitos assuntos. Só tenho isto a dizer: FINALMENTE!

Concordo

De Agustina Bessa-Luís a Maria Gabriela Llansol a ficção moderna portuguesa desprendeu-se da poética – entre nós de frágil tradição – do realismo, sob todas as suas formas, e entregou-se ao mesmo tipo de pulsão que inunda a nossa poesia.









Eduardo Lourenço

Yey!!!!


Já saiu a lista com as canções que vão integrar Falling Deeper, o álbum onde os Anathema vão gravar novas versões das suas primeiras canções. Os álbuns de origem são os primeiros, The Crestfallen EP de 1992, Serenades de 1993, Pentecost III EP de 1995 e The Silent Enigma de 1995. Acrescente-se ainda que duas das canções, "Crestfallen" e "They Die" pertenciam originalmente à segunda demo da banda, All Faith is Lost, de 1991. Eis a lista:

Crestfallen (The Crestfallen EP)
Sleep in Sanity (Serenades)
Kindgom (Pentecost III EP)
They Die (The Crestfallen EP)
Everwake (The Crestfallen EP)
J'ai Fait Une Promesse (Serenades)
Alone (The Silent Enigma)
We, The Gods (Pentecost III EP)
Sunset of the Age (The Silent Enigma)

Agustina Bessa-Luís: A Ronda da Noite

DO PODER, DO REAL E DA FUGA A ELES

Foi em 2006 que se editou o último romance de Agustina Bessa-Luís, "A Ronda da Noite" (ed. Guimarães), que se segue a "Doidos e Amantes" (2005).
Não é a primeira vez que Agustina se debruça sobre as artes plásticas para desenvolver uma história e, desta vez, a escolha não podia ser mais interessante: trata-se do polémico "A Companhia do Capitão Banning Cocq" de Rembrandt, mais conhecido pelo nome que Agustina escolheu para o seu romance. É uma das obras mais controversas de Rembrandt, que já deu origem a inúmeros ensaios e até a um filme de Peter Greenaway.
Neste romance, encontramos a família Nabasco que, ao longo de gerações, nas suas várias casas, possui uma falsificação em tamanho real da Ronda da Noite, que vai ocupando sempre um lugar à-parte entre os pertences da família. Martinho Nabasco é um rapaz singular, uma espécie de mutante, criado pela avó Maria Rosa: desde criança, ele adoece facilmente, manifesta de forma estranha os seus afectos que são, por si só, também estranhos, e o seu maior interesse parece ser mesmo a Ronda. Apesar de ser um rapaz inapto para a vida prática e para a vida sentimental, Martinho demonstra capacidades analíticas e intelectuais desde cedo, um pouco espicaçado pela inteligência altiva e por vezes contraditória de Maria Rosa, a sua principal interlocutora. É de Maria Rosa, que vai dispensando sempre alguma atenção à Ronda, que parte a ideia que o quadro possa mesmo ser o verdadeiro. Na impossibilidade de se confirmar esta teoria, todos parecem aceitar que, pelo menos, aquela reprodução teria vindo do atlier do próprio Rembrandt.
A apatia de Martinho é posta em causa quando Maria Rosa decide adoptar Judite, para viver lá em casa. Judite é uma rapariga de doze anos, cujo pai terá assassinado a mãe por causa de um arrufo conjugal. Judite passa a ser criada com os Nabasco e, por fim, Maria Rosa consegue casá-la com Martinho. O casamento, que não dá filhos, é vivido por ambos com uma certa dose de alienação, ao ponto de uma quase indiferença, e acaba por fracassar. Quando Judite se apaixona por Manuel Andrade, Martinho sente alguma raiva e algum desgosto, sem, no entanto, sentir que ama a mulher especialmente. O caso acaba por ser esquecido e o casal regressa à sua vida de parco contacto amoroso. No entanto, no meio da confusão, Martinho acaba por considerar uma hipótese que havia sido colocada pelas empregadas da casa, aquando da vinda de Judite: a teoria de que teria sido ela, e não o pai, a assassinar a mãe, Estrelinha Sopa-de-Massa.
Mas é principalmente através da Ronda que Martinho percebe aquilo que se passa na casa dos Nabasco, que primeiro é a Casa do Cão e depois o Torreão Vermelho, em Águas Santas. E aqui se entende um pouco a estranheza de Martinho: ele não é capaz de se relacionar directamente com a realidade, precisa sempre de a fazer passar pela Ronda, a sua mais antiga paixão, para poder entendê-la. É isso que o torna tão especial na sua indefinição: porque Martinho é, acima de tudo, uma pessoa indefinida, em todos os aspectos, excepto enquanto ser intelectual. É essa intelectualidade tão particular que faz com que, cada vez mais, Martinho vá projectando a vida para a Ronda da Noite, acabando por se isolar da vida propriamente dita e das pessoas.
Na maneira como Agustina escreve esta história, é essencial a questão do ritmo: "A Ronda da Noite" parece viver de uma espécie de narrativa interrompida, pois a acção vai-se desenvolvendo com alguma velocidade, mas a sua narração é interrompida frequentemente para nos dar acesso às análises de Martinho: assim tomamos consciência da maneira como ele, o mutante, experiencia os acontecimentos, como que retirando-se deles para poder pensá-los, concretamente através das minuciosas observações da reprodução de Rembrandt. Mais ainda, nota-se neste livro de Agustina uma tendência para escrever como quem pinta, com uma pincelada que em muito nos faz lembrar a do próprio Rembrandt, carregada de sombras significativas, de contrastes garridos e até de uma certa ambivalência em relação àquilo que é mostrado. Porque essa é uma das questões mais prementes em "A Ronda da Noite": as diferenças entre o que é verdadeiro e o que é mostrado; sabendo que sempre que no que é mostrado continua a haver algo de verdadeiro, ainda que esse "verdadeiro" possa pertencer apenas à imagem, e não à verdade dos factos.
A questão do poder também aqui está presente, como na maioria, senão na totalidade, dos livros de Agustina. No quadro de Rembrandt, o poder de Banning Cocq está na iminência de ser desobedecido; ou, numa outra teoria, apenas aparenta ser poder, quando, na verdade, a pintura retrata uma festa. Pelo meio desta dúbia manifestação política, encontramos a pequena Saskia, num vestido claro, com uma galinha e uma pistola penduradas na cintura. Se Judite parece representar Saskia no seio da família Nabasco, também é certo que o interesse particular de Martinho pela Ronda parece evidenciar-nos que ele está à margem das hierarquias estabelecidas na sua família, mesmo que inintencionalmente, mas por condição, a sua condição de mutante. Assim nos parece lógico que essa figura que parece existir à revelia do poder, Saskia, seja, na verdade, a esposa de Martinho. E, numa história em que o poder é omnipresente, ainda que surja sempre de forma subliminar, não deixa de nos parecer sintomático que o personagem extraviado da realidade desse poder seja precisamente aquele que se interessa mais por analisar a pintura onde tudo está representado: ele é aquele que está de fora, dialogante, sim, mas com um elemento em que não está realmente inserido.


O final do livro, que não dispensa uma forte tragicidade, vem comprovar a relação quase simbiótica de Martinho com a Ronda, sendo que, nessa simbiose está todo um modo de vida -baseado numa fuga ao real- que, uma vez eliminado, acaba por destruir Martinho.
Romance onde lemos ainda a ironia aguçada do costume, "A Ronda da Noite" é um livro muitíssimo forte, aberto a muitíssimos diálogos, diálogos esses que, em muito, passam pela realidade dos dias de hoje. E, assim, funciona este livro para a realidade actual como funciona a Ronda para Martinho Nabasco.

domingo, 21 de agosto de 2011

Canção para o dia de hoje



Nine Inch Nails: We're In This Together (do álbum "The Fragile (Halo Fourteen-Left), 1999)

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

The Last Exorcism de Daniel Stamm

REPORTAGEM FOLEIRA

Quando, em 1971 William Friedkin adaptou ao cinema o romance "The Exorcist" de William Peter Blatty, duvido que ele pudesse prever que o seu filme seria atormentado por inúmeras sequelas, um pouco por toda a Europa e Estados Unidos; sendo, na verdade, algumas mais assumidas do que outras. Neste caso, não são sequelas como as que foram feitas para outros clássicos, como "Halloween" (1978) de John Carpenter ou "A Nightmare On Elm Street" (1984) de Wes Craven. São sequelas que apenas têm o mesmo assunto, funcionando na maioria das vezes como remakes adaptados e enviesados. O exemplo mais recente disto é "The Exorcism of Emily Rose", de 2005, realizado por Scott Derrickson.


Em 2010, chega-nos, com promessas de novidade, "The Last Exorcism", que se apresenta como um misto de horror com o género agora em voga do mockumentary.
A história que nos conta é a de um padre exorcista que perdeu a sua fé, Cotton Marcus (Patrick Fabian) e que aceita que seja feito sobre ele um documentário que, suposto, mostrará como os exorcismos são uma fantochada e que o efeito que surtem sobre os exorcizados não são mais que mera auto-sugestão, funcionando quase como um placebo.
Cotton é então chamado por Louis Sweetzer (Louis Herthum) à sua quinta, onde irá exorcizar a filha de Louis, Nell (Ashley Bell) que se encontra possuída por um demónio chamado Abalam, um dos servos mais fieis de Lucifer.
É assim que Cotton mostra para as câmaras a falsidade do exorcismo, assumindo com o maior dos cinismos uma atitude crente e convicta perante a família de Nell. Tudo isto é filmado com clara falta de imaginação, chegando ao ponto de se tornar aborrecido. Daniel Stamm parece completamente incapaz de tornar o assunto interessante pois, mesmo sendo verdade que o que nos mostra é, no fundo, um teatro, há que não esquecer que este filme se apresenta como um filme de horror. A questão é que não só não causa medo, como não causa nada em nós. O aspecto pretensamente documental poderia ter sido aproveitado de outra maneira, como vimos acontecer com "The Blair Witch Project" (1999) de Eduardo Sanchéz e Daniel Myrick. No entanto, isto não parece mais que um documentário muito chato sobre um assunto que é também ele tratado de maneira -talvez acidental -a parecer chato.
Para o final do filme fica a suposta reviravolta, que também não nos causa nada, já que acontece quase por acidente, havendo, na verdade, nada no filme que nos indique que essa reviravolta poderá acontecer. O resultado é que ficamos com a impressão de que, algures, Stamm terá percebido como fez um filme aborrecido e tentou dar a volta à última da hora, sem realmente o conseguir.


De resto, o filme está cheio de maus actores, de cenários pobres e pouco imaginativos quando temos a certeza de que Stamm terá visto a película original de Friedkin.
O que é estranho é que, em conceito, este filme até tinha probabilidades de resultar bem. Ele poderia ser uma forma irónica de olhar a questão do exorcismo, mas também o próprio cinema de terror, já que os procedimentos que Cotton encena funcionam um pouco como efeitos especiais; e está também presente a questão da sugestão e do invisível, que conta muito num filme de terror, claro. No entanto, Huck Botko e Andre Gurland, os argumentistas, levam esse conceito para um caminho que faz lembrar uma reportagem foleira da TVI; e Stamm mostra-se completamente impotente no que toca a fazer desse argumento sair um bom filme, como muitas vezes acontece (Ainda há dias falei desta questão a propósito de "Insidious" de James Wan.).
Falta muita coisa a "The Last Exorcism", mas, acima de tudo, falta interesse, e isso é algo que não deveria faltar a filme nenhum. Senão o resultado é este...


Canção para o dia de hoje



The Kills: Black Balloon ( do álbum "Midnight Boom", 2008)

Drama de Matías Lira

QUATRO PALERMAS


Este filme, não sei porquê, estreou no Havana Film Festival de 2010, e fiz download dele de não sei onde, porque li na sinopse que os personagens se deparavam com as teorias de Antonin Artaud sobre teatro. É esta a promessa de "Drama": a história de três jovens actores que se propõe atravessar uma série de situações estranhas, de forma a seguir a ideia de Artaud de que o teatro não devia ser uma mentira, mas o encontrar da verdade dos personagens pelos próprios actores (Mais ou menos isto.), confundindo assim aquilo que são enquanto pessoas com aquilo que são os personagens que pretendem interpretar.
A ideia é boa, se é facto que as teorias de Artaud não foram ainda ultrapassadas e que representam uma verdadeira revolução, a mais significativa talvez, na arte de representar. No entanto, eis o que encontramos no filme de Matías Lira: dois rapazes, Matteo (Eusebio Arenas) e Ángel (Diego Ruiz) e uma rapariga, Maria (Isidora Urrejola). Matteo e Maria mantém uma relação amorosa de componente sexual conturbada, ao que se percebe, devido a algum trauma de infância de Matteo. Ángel atravessa a descoberta da sua homossexualidade. No contexto das suas aulas de teatro, os três propõe-se a viver situações estranhas para depois apresentarem uma peça ou um monólogo. Estas situações estão ligadas a prostituição, a violência e a uma espécie de submundo. Até aqui tudo bem. No entanto, Matías Lira revela-se o mais completo incompetente no que toca a filmar tudo isto. Os três personagens estão tão pobremente definidos que não parecem ter sequer personalidade alguma para começar; e as situações em que se encontram são abordadas de uma maneira tão superficial e tão abandalhada que quase estranhamos que aquilo signifique mais que uma inocente brincadeira de criancinhas num parque infantil. Poderia isto ser uma forma de apontar para a imprepração dos três jovens actores, mas acontece que, pela cenografia e pelas consequências dessas situações, percebemos que era suposto aqueles momentos serem intensos e limítrofes e inclusivamente terem uma dimensão intelectual. Aliás, o único bom momento deste filme é o monólogo apresentado neste contexto por Ángel. É um segmento de boa qualidade, em si, porque a verdade é que, julgando-o de acordo com o resto do filme, gera-se uma incongruência, pois a situação que dá origem ao monólogo está tão mal pensada que, na verdade, só mesmo em ficção é que ela poderia ter originado aquele monólogo.
O resto do filme está sempre de acordo com tudo isto. Situações que notoriamente se queriam fortes e contundentes, mas que resultam sempre pobres enquanto cinema e enquanto tudo, na verdade. A pressuposta dimensão intelectual e experimental de todas essas situações não existe, nem sequer residualmente. Ángel, de repente, torna-se quase apagado, não parecendo muito mais que um adolescente a tentar ter sexo; Maria parece uma menina desesperada por chamar a atenção do namorado que a rejeita e, mais irritante que todos, Matteo leva a sua vida a pensar nos seus mommy issues, o que nos faz pensar que Freud passou mais por aqui do que Artaud. A questão aqui é que o trauma infantil podia até ser uma boa ideia, e, inicialmente, até nos parece que poderá aí mesmo estar um bom ponto de tensão no filme. O problema é o final. A ideia da repetição desse trauma, entre Matteo e Maria é boa, mas a explicação que dão para o que verdadeiramente aconteceu à mãe de Matteo pura e simplesmente não resulta.

Além disso, entre Matteo, Ángel e Maria sugere-se uma relação triangular -que, aliás, é o próprio cartaz do filme -que pura e simplesmente não existe, limita-se a ser levemente, muito levemente, sugerido, no início do filme, perdendo-se redondamente logo a seguir.
A realçar de bom estão apenas pequenos detalhes que, por mais significativos que possam ser, não chegam para salvar um filme. Mas, de qualquer maneira, há que os realçar. Refiro-me ao baton que Matteo vai mostrando como um símbolo da mãe, a pistola de brincar que passa de Matteo para Ángel, o graffiti que Matteo faz, sempre igual, com um lobo (?). Estas pequenas coisas são as únicas que vão dando densidade a um filme a que o que falta é precisamente densidade.
No fim do filme, duas coisas nos podem ocorrer. A primeira de todas é que se Antonin Artaud tivesse visto este filme teria tido um desgosto de morte. A segunda é que, entre pseudo-intelectualidades, este filme é pouco mais que três palermas à frente de uma câmara, e mais um palerma atrás. E não há muito mais a dizer.


sábado, 13 de agosto de 2011

Companhias para as férias (as minhas)







Insidious de James Wan

DO CLICHÉ AO SOBRESSALTO

É praticamente impossível não se conhecer o nome de James Wan. Relembremos que foi ele quem realizou "Saw", em 2004, um filme cuja tensão e a subtileza fizeram resultar muitíssimo bem, como uma espécie de rasgo de originalidade num contexto que se tornava cada vez mais aborrecido. O que veio estragar tudo foram as seis sequelas, que, mesmo não sendo realizadas por Wan, por ele foram produzidas, o que nos diz que, mesmo não realizando os filmes, lhes deu o seu aval, contribuindo assim para a rápida deterioração do seu realmente bom filme.


Em 2010, Wan dá-nos este "Insidious", que se nos apresenta com uma premissa que, em princípio, não tem nada de particularmente novo. É uma história de família, sobre Renai (Rose Byrne) e Josh (Patrick Wilson), um casal com três filhos, um dos quais se encontra num coma profundo, depois de ter caído de um escadote.
O casal muda-se para uma nova casa, que dá sérios sinais de assombração. Pressionado por Renai, que, como compositora, trabalha em casa, Josh acaba por concordar em novamente mudar de casa. A questão muda de figura quando as visões de Renai continuam a acontecer na nova casa. O quarto onde Dalton (Ty Simpkins), o filho em coma, parece, de repente, ser o centro dos fenómenos estranhos que se desenrolam.
Por influência de Lorraine (Barbara Hershley), a mãe de Josh, o casal chama à casa Elise (Lyn Shaye), uma espécie de perita em ocultismo, que lhes revelará as verdadeiras razões por que Dalton se encontra em coma, que nada têm a ver com a queda do escadote, mas com a sua capacidade para a astro-projecção.
Nada, na verdade, se nos afigura verdadeiramente insólito na sinopse de "Insidious". Alguns clássicos como "The Hauting" de Robert Wise (1963) a "The Amityville Horror" (1979) de Stuart Rosenberg ou o próprio "The Shining" (1980) de Stanley Kubick podem ocorrer-nos numa primeira parte do filme em que sentimos um certo aproveitamento do genius loci da primeira casa, que nos fazem acreditar ser ela a origem dos fenómenos. Quando, num segundo momento, nos deparamos com a verdade sobre os acontecimentos, que, ainda que indirectamente, passa pela possessão, é impossível não pensar em "The Exorcist" (1971) de William Friedkin, e, na questão de se tratar de uma criança, em "Rosemary's Baby" (1968) de Roman Polanski, e, mais ainda, no que toca às crianças terem aptidões particulares no que toca a enveredar por outros mundos, ocorreu-me a série "Fringe" de J.J. Abrahams.

Que quero eu dizer com tudo isto? Que, no que toca à sinopse e ao conceito em geral, "Insidious" não nos vem trazer novidade alguma.
E, no entanto, "Insidious" está muito longe de ser um mau filme, ou, pelo menos, um mau filme de horror. O que salva, portanto, o filme da sua sinopse pouco imaginativa? Nada mais que a realização.
"Insidious" vem relembrar-nos o que de melhor tinha "Saw" (E com isto refiro-me estritamente ao original.), primeiro, no que toca à criação de cenários que, efectivamente, conseguem suscitar em nós os efeitos pretendidos -de medo ou de reserva. Mais ainda, nos mais variados momentos, Wan prova-nos que consegue reciclar com a maior das eficácias todos os velhos truques para nos fazer dar um salto na cadeira: não é raro que este filme nos sobressalte. Por último, está longe de ser um filme de estética pobre. Numa tipologia em que muito funciona por sugestão e pelo não-mostrado, a estética é essencial. Wan mostra aqui que, visualmente, não se contenta com aquilo que são os chavões do género, e este filme, no que toca ao lado visual, particularmente a partir da chegada de Elise, parece ter as suas raízes muito mais localizadas no cinema mudo (Com algo a fazer lembrar F.W. Murnau, entre outros.) e até um pouco nas experiências surrealistas.
Somados e subtraídos os vários prismas por que podemos olhar "Insidious", está visto que James Wan tem talento para o cinema de terror e que consegue, definitivamente, a proeza de transformar uma sinopse pobre num filme bom. E como um filme tem que ser visto enquanto filme, e não enquanto adaptação de um objecto escrito que seria o seu argumento, vale a pena ver "Insidious". E esperemos que realmente Wan continue a fazer filmes nesta ordem; e que não haja agora quatro ou cinco sequelas que venham destruir este filme.


Agustina tem destas coisas... (27)

aos dezoito anos os rapazes não têm queda para essas presas de solteirões ou maduros conhecedores, e nem sequer notam a beleza pueril duma madona de bairro. Preferem as loiras vividas ou as primas com iniciativa.



de "Prazer e Glória" (1988)

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A Dama Verde 1: A Vida




O tempo de bordar uma frase é um tempo novo: surpreendente, completamente distinto do tempo de escrevê-la.
Facilmente se suporá -se pre-suporá -esta afirmação como verdadeira. Sua verdade é nenhuma, enquanto não experimentada. Do pensar ao agir vai o mesmo abismo, o de dois tempos diferentes. A velocidade, e a exploração.
Por exemplo: com suas mãos explorava o tecido, as suas possibilidades. Com seus anseios implorava, ao destino, a felicidade.

MARIA ISABEL BARRENO
A Dama Verde: uma exposição
1983, edições Rolim

imagem de MARIA ISABEL BARRENO

Apareceu já

esta antevisão do que será "Falling Deeper", o próximo álbum dos Anathema. "Kingdom" é retirado do EP de 1992 "Pentecost III". Em baixo fica a nova versão e a antiga, para efeitos de incrível comparação...



terça-feira, 9 de agosto de 2011

Rui Lage: Um Arraial Português



O QUERIDO MÊS DE AGOSTO

O percurso de Rui Lage tem-se traçado um tanto ao largo das tendências da década em que começa a publicar. Depois de um primeiro livro de sonetos, estrutura canónica que abandonou posteriormente, Rui Lage marcou-se por uma poesia depurada, descritiva, simples e fixa no poder da imagem e no captar de um momento que, não sendo fotográfico, é breve, mas significativo. Disto é um excelente exemplo "Revólver" (2006, ed. Quasi), terceiro livro do autor e definitivamente um dos mais conseguidos a todos os níveis.

"Corvo" (ed. Quasi), editado em 2008, vinha trazer-nos poemas ligados a um universo específico, o de um Portugal rural ou quase, abalado por uma série de questões. A presença dessa ruralidade, particularmente de Trás-os-Montes na poesia de Rui Lage, existia desde o inicial "Antigo e Primeiro" (2002, ed. Quasi), e foi uma presença que, independentemente de evoluções e transformações sofridas, nunca desapareceu.




Este "Um Arraial Português" (ed. Ulisseia), editado em Abril deste ano, centra-se numa temática que está quase umbilicalmente ligada a esse universo do interior português, que tem, goste-se ou não, características muito específicas.
Particularmente, neste livro lemos sobre o chamado querido mês de Agosto, em que os emigrantes regressam à terra. Encontramos então os arraiais, a música popular, os cafés, as roulottes, os namoricos, os engates, os desacatos, enfim, toda a celebração dessa altura do ano em que o que era quase desértico se torna subitamente habitado, festivo e, à sua muito particular maneira, quase cosmopolita. Mas mais do que fazer uma mera descrição ou recriação destes eventos e destes comportamentos, Rui Lage sabe como usar tudo isto para arquitectar uma análise facetada de Portugal -e não só da província- e dos portugueses. É isso que sentimos no poema de introdução, Ultimato, onde lemos:

O país dança? Pois dance agora

ou cale-se para sempre
e decida-se depressa
enquanto a música não cessa
(p.13)

Não é, como se vê, o Portugal de um tempo qualquer que aqui está a ser falado. É este, de agora, afogado e miserável, incapaz de se decidir sobre coisa nenhuma. Que faz então este país? Prepara-se para o arraial. Esta ideia aparece subentendida ao longo de "Um Arraial Português" mas, em vez de enveredar por um discurso de insistente e excessivo rebaixamento do país que acaba por resultar pior do que melhor (A prová-lo ficam alguns textos de Jorge de Sena, de Joaquim Manuel Magalhães, etc.) por mais que até possa esse discurso ser realista; Rui Lage prefere olhar atentamente os intervenientes dessa espécie de fuga à realidade que representam as festas do emigrante, entre outras do mesmo género.
É esta uma das questões que penso ser mais pertinente neste livro. A maneira como estas pessoas são olhadas, de novo em momentos curtos e subtis, faz delas uma espécie de pequena mitologia. Não estamos perante a tentativa de criação da personagem-tipo, mas de um olhar a um tempo minucioso e vago, que torna estas personagens reconhecíveis a qualquer um que já tenha presenciado este tipo de eventos. Às descrições também não falta ironia, sem nunca, no entanto, cair no desprezo; e assim estas figuras nos surgem como uma espécie de deuses de uma religião específica. Daí a mitologia.
Talvez a esta ideia da religião específica, ou mitologia específica, não esteja de todo desenquadrada para falar de "Um Arraial Português". Isto porque, uma religião, à partida, conta com, além dos seus ídolos, com os seus rituais. E esses rituais são o momento de muitos destes poemas. O arraial em si parece representar o ritual principal, mas há também os outros ritos menores e os seus espaços, como sejam os bailes, os cafés de aldeia, as procissões, as juntas de freguesia, etc. Estas ideias, a meu ver, formam quase uma estrutura, subliminar, que se sente ao longo de todo o livro; inclusivamente na própria organização dos poemas por capítulos: os primeiros três formam uma espécie de introdução; e os três capítulos marcam os "Dias Antes do Arraial", o primeiro; e o próprio arraial, os outros dois.
É neste universo assim estruturado que encontramos, também, as ideias que estão imediatamente associadas a ele. Deles, sobressai em vários dos poemas uma espécie de desfasamento. Parece-me ser essa uma ideia crucial para entender de que gente e de que universo estamos a falar. Esse desfasamento passa, essencialmente, por uma questão cultural, mais até do que temporal ou espacial (Até porque o cultural inclui o espacial e o temporal.). Disso é exemplo As Colchas Ricas Formando Troféus:

(...)
pintam as unhas, alheias à rua
que entre nimbos e pedras levada
do adro aos metais do coreto,
com vagar de alimária
tocada de sombras hirsutas,
vai passando a trote de andor
à frente o compasso
atrás a fanfarra.
Fechadas em casas de banho
dedilham telemóveis
com destreza de pianistas.

Em vez de flores no cabelo,
auriculares.
(p.26)

Este é um exemplo desse desfasamento, entre aquilo que se passa na rua, ou seja, no lugar onde aquelas raparigas vivem, e que aponta para as tradições e os espaços ligados à província; em contraste com os actos dessas raparigas, que pintam as unhas, dedilham telemóveis e usam auriculares. Mais ainda, note-se a subtileza dos últimos dois versos, esses sim realmente sintomáticos do desfasamento, onde lemos a transformação que se dá entre essa tradição de flores no cabelo e a actualidade dos auriculares.
O mesmo acontece, por exemplo, em Vale mais um mês aqui (Que um ano lá):

Tua mãe sempre soubera
que levarias contigo o burro fiel,
a horta onde corre abundante
da tua pele o íntimo regato,
que não saberias desatar-te do laço
armado com esmero no trilho
(...)
(p.31)

mas aqui fala-se especificamente do emigrante e de uma questão que é forçosamente cultural, e que passa pela tentativa reiterada mas falhada de amputação das raízes. Neste poema, o emigrante "Na cave de um subúrbio de Paris/jaze[u] enroscado em saco-cama" (p.31), mas não foi capaz de realmente deixar o burro fiel, a horta, o "laço/armado com esmero no trilho", o que nos poderá explicar o porquê da mistificação do regresso à terra. Porque é esse momento, o do regresso à terra, que constitui a crença desta religião, se é que nestes termos se justifica realmente falar.


Outra das características que penso serem essenciais para uma leitura do quinto livro de poesia de Rui Lage, é a questão da linguagem. Acima disse que esta poesia se marcou sempre por uma linguagem depurada e simples; encadeada em estruturas de ritmo contundente.
Em "Um Arraial Português", voltamos a sentir uma grande atenção ao ritmo dos poemas, por norma escritos em versos curtos, de onde, por vezes, surge um verso um tanto maior que desconcerta. No entanto, a nível de linguagem, alguma alteração aqui se opera na escrita de Rui Lage. A linguagem continua depurada; mas desta vez surge-nos como um processo extremamente elaborado, que funde um tom coloquial com um tom muito popular. Exemplo:

(...)
Nunca lhes temi a navalha
e as promessas, terríveis,
de tripas ao sol:
ternas criaturas de raros dentes,
a soco fendidos, ou dourados,
em carroças de estrelas dormiam
(era no espelho do rio que as via
estacionadas.)

Conforta-me vê-los no recinto,
ainda que já não lhes saiba o nome
como soube de certos outrora,
a uns supondo vivos
a outros assassinados.
(p.50)

neste poema vemos nítida essa fusão que acontece entre dois registos de linguagem, onde expressões como tripas ou socos surgem com outras como fendidos, ternas criaturas de raros dentes, como soube de certos outrora. As palavras mais ligadas ao popular apontam-nos para uma oralidade descontraída, nos poemas elas vão sendo sugadas para uma linguagem claramente escrita e com notórios sinais de erudição não só nas próprias palavras, mas também na sua ordenação na frase. Ora, essa fusão só pode causar estranheza, o que muito favorece "Um Arraial Português". E, claro, há ainda que referir alguns momentos em que essa escrita erudita começa a ser versejada de uma forma que quase faz lembrar uma cantiga ligeira ou uma ladainha: nesses momentos, essa estranheza vai ao extremo, e deixa-nos a certeza de estarmos realmente perante uma poesia em que tudo está verdadeiramente pensado.
Isto porque, para criar um ambiente, uma espécie de argumento credível, Rui Lage soube usar com inteligência e sensibilidade todas as cambiantes que a poesia exige, no percurso que vai do conteúdo à linguagem. Essa é a razão pela qual terminamos "Um Arraial Português" com a sensação de que poderá muito bem ser o melhor livro deste poeta.

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Summernight Horizon



Dreaming Light



A Natural Disaster

The Shrine de Jon Knautz

LUGAR COMUM

A produção de filmes de terror, imagino eu, deve ser de uma quantidade mais medonha do que são medonhos os conteúdos de muitos desses filmes. Nem tudo nos chega, claro, o que significa que, muitas vezes, perdemos bons filmas, outras temos a sorte de ficar ao largo do que de pior se faz dentro de um género particularmente sensível como é este.


"The Shrine" é do ano passado, e faz parte desses filmes que nem chegam a Portugal e que só podemos ver através de meios ilícitos. E é também um caso não de um exemplar do que de pior se faz dentro do género, mas um exemplar do que de mais vulgar se faz.
De facto, se há palavra que nos ocorre frequentemente ao longo deste filme é "vulagridade". Esta parece ser a regra, a começar pelo argumento e a terminar na realização.

Facilmente percebemos que o tema religioso ou místico será o assunto deste filme de Jon Knautz. Carmen (Cindy Sampson), uma jornalista, fica intrigada com o desaparecimento de um americano na cidade de Alvania, no interior da Polónia, localidade onde, descobre ela, já vários americanos haviam inexplicavelmente desaparecido, tendo as suas bagagens sido encontradas, também inexplicavelmente, em várias cidades do leste da Europa. Para combater o tédio das histórias que escreve para o jornal onde trabalha, Carmen decide ir a Alvania, sem o conhecimento do seu editor. Vai acompanhada do namorado, Marcus (Aaron Ashmore), fotógrafo, e da amiga Sarah (Meghan Heffern), também jornalista.
Chegando a Alvania, são mal recebidos pela população tipicamente fechada e desconfiada e agressiva, mas decidem ficar. O diário do rapaz desaparecido fala de um nevoeiro na montanha, que eles conseguem ver. Decidem ir investigar, sendo que Sarah e Carmen entram nessa espessa nuvem, onde avistam uma arrepiante estátua que lhes causa uma sensação de confusão e de delírio, que, aparentemente, passa. A questão é que, logo depois, começam a ser perseguidos pela população de Alvania, que consegue apanhar as duas raparigas, parecendo prontos a fazer, com elas, um estranho e macabro ritual, envolvendo um bibe branco e uma máscara de ferro, como eles já haviam visto antes, ao investigar a vila.
O argumento, assinado por Jon Knautz, por Brendan Moore e por Trevor Matthews (Este último é também um dos actores que interpretam os populares de Alvania.), não podia ser mais pródigo em encontrar lugares-comuns do género, que nos aludem, imediatamente, para filmes como "The Ring" (2002) ou, mais ainda, "The Blair Witch Project" (1999). Levando a questão da falta de originalidade ao extremo, quase podemos dizer que "The Shrine" é uma espécie de versão explícita do filme de Eduardo Sanchez e Daniel Myrick, com a mesmíssima ideia dos três investigadores perdidos na floresta sem que ninguém saiba que eles ali estão, e a darem por si envolvidos numa perseguição.
E se o argumento em si não oferece grandes novidades, Knautz também não é particularmente capaz de tornar este filme interessante, seguindo mais ou menos aquilo que vai sendo esperado. Quando a comunidade inicia o ritual com Sarah, a cena quase corre bem mas uma frase bastante inconveniente para o contexto dita por Carmen, e ainda por cima revelando, o que acontece várias vezes, que Cindy Sampson não é uma boa actriz, estraga tudo.
O final do filme não nos traz novidade nenhuma novidade, como seria de esperar, parecendo claramente baseado, de novo, na saga Blair Witch, desta vez em "The Book of Shadows, BW2" (2000) e a outros filmes do género. Também é bastante irritante que grande parte do filme seja falada em polaco (?), sem legendas, o que nos deixa, durante muito tempo, com a sensação de que quase estamos "a mais". E nem sequer vou entrar pela questão de que já não é verosímil que uma comunidade destas realmente exista num país como a Polónia, que não é propriamente sub-desenvolvido...

Salva-se uma boa caracterização dos habitantes de Alvania, e de uma capacidade de criar algum interesse perante a hierarquia religiosa que parece existir ali (Reforçada pelo facto do filme se chamar "The Shrine" -o santuário.), e ainda boas interpretações dos aldeões e de Aaron Ashmore, já que Sampson é o que já se disse e Meghan Heffern interpreta uma personagem tão apagada que quase não tem existência sem estar aos gritos.
A falta de originalidade continua a ser um problema para o cinema de terror, e não é com filmes destes, certamente, que essa tendência vai ser contrariada.