quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Três livros de Ana Hatherly

Parece-me importante falar destes livros de Ana Hatherly, ou melhor, chamar a atenção para eles.



"Um Calculador de Improbabilidades" (2002) não é efectivamente a poesia reúnida de que continuamos à espera. Trata-se de uma antologia, bastante exaustiva, do trabalho da poeta no campo da poesia experimental, excluindo as Tisanas e a Poesia Visual. Este livro deve ser visto, penso, em conjunto com outros dois da autora, de lançamento recente, ambos na Quimera editores, que editou também "Um Calculador de Improbabilidades": "A Mão Inteligente" (2004), o álbum que reune a obra completa da autora em Poesia Visual; e "Obrigatório Não Ver" (2009), uma reunião de crónicas e intervenções na comunicação social da autora sobre a Poesia Experimental.
Agrupo estes três livros, no sentido não de olharmos para eles como súmula da obra de Ana Hatherly, para o que são insuficientes; mas no de olharmos para eles como documentos acerca de uma fase específica da poesia portuguesa, na qual Ana Hatherly teve lugar importante, senão central.
Poderia acrescentar a este conjunto uma série de outros livros, mas, infelizmente, encontram-se esgotados e sem reedição; o que aliás denota a falta de cuidado dos editores em fornecer aos leitores a informação essencial sobre a cultura poética.




Centrando-me agora em "Um Calculador de Improbabilidades", ele funciona como realmente um olhar sobre a produção da autora em domínios que, ainda hoje, carecem de algum entendimento por parte do público. Este livro pode muito bem ser uma reparação, pelo menos parcial, desta falha. Aqui temos um percurso que vai desde 1959, data em que se publica o primeiro poema experimental da lavra de um autor português, a própria Ana Hatherly; e termina em 1989.
Da selecção de livros aqui apresentados, há alguns que nos surgem apenas fragmentados, caso de "Sigma" (1965) ou "Eros Frenético" (1968); e outros que nos aparecem na íntegra, até fac-similados, caso de "Estruturas Poéticas- Operação 2" (1967), "Anagramático" (1970) ou "O Cisne Intacto" (1983). Pelo meio, existe a importante recolha de poemas publicados dispersamente, bem como textos que estiveram na basa de happenings, performances, e, claro, alguns poemas-ensaio e poemas em prosa que, em última análise, estão na base das Tisanas.
Assim sendo, como acima disse, neste livro pressente-se uma intenção documental. Esta ideia é reforçada pela inclusão do "Roteiro" inicial, escrito pela própria Ana Hatherly, em que nos explica as ideias que estiveram na base dos livros que ora nos mostra. Assim se definem muitas das estratégias e bases teóricas da Poesia Experimental, o que é particularmente notório em "Estruturas Poéticas- Operação 2" e em "Anagramático".
Questões como a resposta do poema perante um "programa" e uma "base teórica" ficam aqui bem explícitos, e podemos entendê-los não só como génese de uma criação poética, mas também como uma reivindicação social e, acima de tudo, cultural. O problema essencial da Poesia Experimental parece-me ser essencialmente o seu cariz conceptual; já que este obriga a um largo conhecimento das normas que geram a criação. Assim sendo, os poemas ficam ameaçados pela falta de informação que o meio literário criou em torno deste movimento, que precisava dessa informação talvez mais do que qualquer outro movimento.
Mas, além de nos mostrar as ideias atrás da Poesia Experimental portuguesa, este livro também é capaz de nos mostrar que, para todos os efeitos, toda a poesia no fundo responde perante determinadas "estruturas". Assim sendo, entender estas estruturas é muitas vezes entender como funciona a criação poética, independentemente do seu cariz, conceptual ou não.




Quando colocamos este livro perante "A Mão Inteligente", entendemos por que, realmente, a Poesia Visual não deixa de ser poesia. Para este efeito, parece-me particularmente importante comparar "A Mão Inteligente" com o capítulo "Leonorana" de "Anagramático". Esta ideia vem contrariar muitos teóricos, que defendem que a Poesia Visual não é poesia pois não é linguagem. Ao ver-mos o trabalho pictórico de Ana Hatherly, e ao entendermos o "programa" que o define, percebemos que efectivamente o pictórico não é menos linguagem e, bem pelo contrário, será uma linguagem mais independente de códigos linguísticos, capaz, portanto, de comunicar sem necessidade de tradução; o que fica, aliás, bem explícito no ensaio que precede "A Reinvenção da Leitura" (1975), segundo livro de Poesia Visual da autora. Porque fica claro nestes livros que o propósito maior da poesia deve ser a capacidade de comunicar, de expressar alguma coisa; e assumir que apenas a junção de palavras num texto é capaz disso, é uma ideia redutora. E, aliás, essa capacidade de comunicação fica provada pelas "reescritas" que Ana Hatherly opera sobre o famoso poema de Camões em "Leonorana", pois a "resposta" é ainda uma forma privilegiada de comunicar com uma obra, de com ela manter um diálogo.
A questão da percepção não passa ao lado destas colectâneas, também. Aqui entendemos como a organização de um texto numa página é também uma forma de o definir; principalmente quando sabemos que a Poesia Experimental tantas vezes se assumiu dependente da leitura em voz alta. É o caso de "O Cisne Intacto", recolhido em "Um Calculador de Improbabilidades", onde os textos são impressos com espaços em branco, com palavras fragmentadas: estas técnicas vêm, na verdade, definir um ritmo (Não esqueçamos que o primeiro livro de Ana Hatherly, de 1959, não incluído em nenhuma das recolhas, se chamava "Um Ritmo Perdido".).




Por fim, "Obrigatório Não Ver", recolhe pela primeira vez uma quantidade de documentos que Ana Hatherly conseguiu manter no seu espólio, documentos esses relativos a programas de televisão, de rádio, crónicas e textos sobre música. Este está longe de ser um dos primeiros ou um dos mais completos trabalhos ensaísticos de Ana Hatherly, que, ao longo da sua carreira, tem dedicado muitas publicações a estudos sérios sobre Poesia Experimental, mas também sobre a Poesia Barroca. Mas, como acima disse, a maioria desses trabalhos encontra-se esgotada e não reeditada. Mesmo assim, para quem conseguir em alfarrabistas adquirir esses livros, verá que "Obrigatório Não Ver" tem uma vantagem sobre eles: é que sendo textos dirigidos a um público em princípio não especializado na matéria, eles apresentam uma simplicidade que os torna muito facilmente compreensíveis. O caso de Ana Hatherly será um pouco uma excepção, pois os seus ensaios propriamente ditos não incluem linguagem hermética entendível apenas por quem estuda Letras, bem pelo contrário. Mas, mesmo assim, "Obrigatório Não Ver" destaca-se. De facto, é uma recolha fragmentada e que não inclui a totalidade da informação necessária para perceber a génese da Poesia Experimental. No entanto, contém sintetizada a informação essencial sobre a mesma, os aspectos realmente comuns a todo o movimento, que inclui nomes como E.M. de Melo e Castro, Salette Tavares, António Aragão, Herberto Helder, entre muitos outros. Assim sendo, não temos aqui as chaves para entender cada caso concreto, mas entendemos o que os une; e, mais do que isso, aqui reunimos uma espécie de bibliografia essencial para entender o movimento, especificando dentro da obra de cada autor, algumas obras mais significativas. Isto é particularmente importante em casos de pessoas que apenas brevemente se relacionaram com a Poesia Experimental, como é o caso de Herberto Helder, de quem podemos isolar a "Comunicação Académica" (1963) e "Electronicolírica" (1963, título alterado para "A Máquina Lírica".)
Penso que, mais do que serem uma oportunidade de entender melhor o movimento da Poesia Experimental, estes três livros de Ana Hatherly são também uma oportunidade para entender melhor determinada parte da cultura, não só poética, que em último caso é representativa também de uma grande contestação social e política, como acontece com, no fundo, toda a cultura.
E, claro, está de parabéns a editora Quimera, que afinal aceitou lançar estes projectos, com a importância que me parecem realmente ter.

1 comentário:

Graça Martins disse...

uma análise exaustiva sobre a poesia que se lê, que se vê, a poesia visual, a poesia que fala dos silêncios, que é analítica, inteligente e duma sensibilidade extraordinária.
Gostei. Beijinho