quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Litoteana III


Essencialmente a casa é uma caixa -um continente. Uma rua duma cidade é essencialmente uma sucessão de caixas colocadas muito juntas. Isso é que é uma cidade. O arquitecto concebe mentalmente as casas isto é as caixas geralmente preocupando-se mais e adornando apenas dois lados dela (na cidade claro):
o da rua (que é formado de caixas) e o das traseiras (também formado de caixas).
Geralmente o lado da rua é aí que o arquitecto se esmera: ondas nervuras saliências golpes estátuas janelas entradas cores vidros materiais diversos.
Para as traseiras ou muitas escadarias e muitas janelas ou só algumas ou então muitos canos muitos canos. Às vezes também passa o comboio ou alguma ponte. Mas não é muito frequente. Geralmente o que temos é um cubo de seis faces das quais só uma é amada em extremo: a principal. É isso o que desequilibra a casa. Por exemplo: que espécie de superfície afeiçoada apresenta a face dos alicerces? A aspereza e até a maldade dessas caves dessas depressões desses pilares, ferros etc. feíssimos entrando
pela terra dentro com duríssimos narizes acrobáticos? O telhado enfim sempre
pode ser uma açoteia ou um porto para helicópteros ou então um bosque de chaminés ou mil bicos de torres totalmente desnecessários não é verdade enfim o telhado sempre é mais arejado mas o que dizer da imensa fragilidade das faces da casa que encostam às contíguas? Que orelhas mais rentes! Alguma vez se viu? Que surdez que coisa mais chã e atrofiada! Como quem diz eis uma faca eis outra face. Não é uma coisa alegríssima considerando a perturbação da fachada essa perfuração esse rendilhado essa complicação da caixa o retalhe da caixa a indemnização do cubo? Quando os arquitectos modernos conceberam os arranha-céus a casa paralelepídeda o paralelograma em pé
nessa altura descobriram a superfluidade da fachada a não necessidade da fachada; isto é, a necessidade total da fachada. Então a casa passou a ser uma total fachada a caixa fachada a caixa fechada a tranquilidade da coisa cúbica serena pacífica totalmente desigual em todos os seus lados.
..................................................................................
A cidade é um grande animal paciente. As casas equilibram-se-lhe na pele. Os automóveis correm-lhe pelo pêlo animados parasitas

Ana Hatherly
Eros Frenético
1968, ed. Moraes
desenhos de Frank Lloyd Wright

Sem comentários: