sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A Poesia


Era um encontro impossível. Deitados à noite
sobre uma colcha apenas conseguiram tocar-se
com o choro, mas o cavaleiro não conhecia esse
segredo, nem via que o seu beijo se assemelhava a
uma morte definitiva. Porque tudo nele era matéria
flutuante, não suportava a felicidade. Uma luz
que não morria saía dela, como um barco que
demora séculos a desfazer-se abandonado num
porto, já devorado pelas algas. Por isso, o homem
vestia de novo a armadura e esperava até que,
desaparecido o anjo, solta para a caça, ela voltasse
a ser a presa sem covil, à mercê da sua lança, onde
por suas próprias mãos havia colocado uma insígnia.


Jaime Rocha
Zona de Caça
2002, ed. Relógio d´Água
pintura de Ford Madox Brown

1 comentário:

Graça Martins disse...

Tão sensível esta prosa poética de Jaime Rocha. A Ofélia ou Lizzie do Dante Gabriel Rossetti. Vai ser a motivação para o meu próximo quadro, isto é, não saio das águas turvas em que sempre mergulho qual Ofélia de Millais. A minha Ofélia preferida, mesmo morta abre os braços para abraçar e levar na barca de Caronte o amado...
A ilustração também é linda.
Tudo respira uma atmosfera pré-rafaelita.