quarta-feira, 3 de novembro de 2010

celebração de modo mudando


era um livro pequeno, a catorze de fevereiro,
quando num sobressalto fui buscá-lo ao tipógrafo e o levei à livraria,
há trinta anos numa tarde de sábado, creio que era sábado,
e tudo se misturava alegria, apreensão, alguma pose, as frases feitas,
e o tempo frio a las cinco de la tarde.

hoje, com alguma experiência acumulada e vários cepticismos,
muitas frases desfeitas, sobretudo impaciências técnicas,
tenho ainda memórias desse livro tirado a duzentos exemplares
que fui pagando a prestações ali pró carvalhido
e se acaso as paguei todas levei decerto muitos meses.

merece a ode o snr. amaro costa,
que demorava as provas mas dava tais facilidades
e era amigo dos poetas mais novos e admirador dos poetas mais velhos
e fabricava livros de poesia e falava certamente de política
com alguma prudência elementar em tempos policiados.

era em sessenta e três, na tarde de catorze de fevereiro, a do embrulho triunfal.
tornei-me um autor do porto ao entrar com ele na livraria, praia
lá da rua de ceuta, um dia toda lapis-lazuli e coral.
e depois em casa com alguma atrapalhação e sem naturalidade nenhuma,
pus-me a dedicar exemplares aos pais, à namorada.

sempre esperei das letras o que elas não podiam dar-me
até desesperar. e então deram-me tudo, mais ou menos tudo
insensatamente: os ácidos, os gumes, as minhas dinamenes,
os ângulos agudos. citei vezes abundantes os meus mestres,
trinta anos de os pastar, bem os servi, e fui discreto.

Vasco Graça Moura
O Concerto Campestre
1993, ed. Quetzal
pintura de Ângelo de Sousa

2 comentários:

Graça Martins disse...

acho deliciosa esta descrição, e a revelação de uma emoção tão genuina do aparecimento de um livro/edição de autor. Uma beleza. Vasco Graça Moura não esconde o seu primeiro livro, aliás caminho de tantos autores famosos. Uma raridade que fica inscrita no coração do autor, com mais importância que a quantidade de livros que já editou em editoras de luxo.
Belo, como sempre, o desenho do Ângelo.
Fosse eu poeta e não perdia tempo a deprimir, na busca de editoras raras ou em vias de extinção.
O autor fazer o seu primeiro livro é um sinal de orgulho e aristocracia, que fica para a posteridade. Acto de integridade absoluta.

Supermassive Black-Hole disse...

eu não teria dito melhor...