domingo, 17 de outubro de 2010

Maria Gabriela Llansol: Depois de Os Pregos

DORES DE PARTO

Durante onze anos não houve livro de Maria Gabriela Llansol. “Os Pregos na Erva” (ed. Portugália) editado em 1962 valeu-lhe a inclusão em várias antologias de contos e a publicação dispersa por jornais e revistas, mas só em 1973 o segundo livro viria a lume. Título genérico: “Depois de Os Pregos na Erva”; subtítulo: “E Que Não Escrevia/ Dez anos de Escrita” (ed. Da autora para Afrontamento). A explicação para a contradição suscitada pelo subtítulo surge particularmente no primeiro texto aqui apresentado, “E Que Não Escrevia”.


Ao abrir este volume encontramos, na página de rosto a indicação dos três “livros” que o constituem e respectivas datas:

Lovaina, 1968- Lovaina, 1971
E QUE NÃO ESCREVIA

Lisboa, 1964- Lovaina, 1968
UM TEXTO DECADENTE

Lisboa, 1961- Lisboa, 1963
O ESTORVO

São portanto três textos ordenados do mais recente para o mais antigo; escritos em 2, 4 e 3 anos, cobrindo realmente dez anos de escrita. Portanto não pode deixar de nos parecer estranho o subtítulo que é também título do primeiro livro.
“E Que Não Escrevia” parece ser um livro auto-biográfico (As datas, os nomes, os factos, coincidem com o que conhecemos da vida de Llansol.), mas não se trata propriamente de uma narrativa, de uma auto-biografia no sentido vulgar do termo. Este texto passa pela reconstrução obsessiva e não linear da vida da narradora, através de memórias, diários, cartas, postais, protestos e de uma relação intrínseca com o poder da imagem.
A figura central é antes de mais uma figura em constante mutação, sendo o aspecto mais evidente o do sexo, ao ponto de chegarmos a ler

“Sinto-me mal. O meu sexo acaba de ser determinado.”
(pag.51)

após várias referências a uma “irmã uterina” (Vejamos que o útero é um lugar de decisão do sexo e, em última análise, de morte e vida.) que será parte integrante dessa indefinição sexual.
As questões da sexualidade, que abrangem a figura central e a do pai, são das mais relevantes, mas a questão da morte tem também um peso decisivo, que passa do pai para a/o filho/a, já que o pai é “centro dos fantasmas da família e dos seus fantasmas” (pag.54), uma ideia que não é de todo estranha à obra posterior de Llansol, com particular incidência em “Um Beijo Dado Mais Tarde” (1991, ed. Rolim).
Entre a sexualidade indefinida ou ambivalente e a morte, esta criança, pois é de uma criança que se trata, escreve, embora admitindo que “sei escrever, amanhã não sei escrever” (pag.70). E, nesta difícil relação com a escrita, a criança concentra-se na pintura: na imagem, portanto. A escrita é, para todos os efeitos, algo de estranho a esta criança, é uma pertença, uma vez mais, do pai, que lhe dedicara contos, que lhe escrevia postais pedindo-lhe que respondesse- e que ouvia os seus protestos escritos. E eis aqui um dos mais interessantes aspectos de “E Que Não Escrevia”: é que a presença contínua do pai não parece expressar qualquer tipo de Complexo de Electra, mas sim uma relação que se prende essencialmente com os livros e, daí, a escrita. E isto é relevante porque, apesar desta criança assumir a pintura como vocação, ambiciona a escrita.
Esta transição dá-se quando a criança descobre na casa uma figura de braço decepado. Se se podia dizer que o braço pode representar a sexualidade, é certo que também pode representar o acto de escrever. É esta figura, na sua simultaneidade entre sexo e escrita que incita a criança a escrever. Porque se antes ela pensava “livro, os frutos que tu dás estão maduros, mas tu não estás maduro para os teus frutos” (pag.71) será a seguir que a própria criança percebe

“sou uma figura”
(pag.72)

A “figura” é então uma forma de manter presentes os vários elementos: masculino, feminino, vida, morte. Unindo o sexo e a morte, Eros e Thanatos, a figura representa a escrita, a escrita llansoliana como a conhecemos de “Causa Amante” (1984, A Regra do Jogo) ou “Contos do Mal Errante” (1986, Rolim). É numa cena pungente, abarrotante de sexo, que o texto termina com o nascimento da escrita.
E assim se pode explicar, tendo a figura como charneira, essa contradição entre “E Que Não Escrevia” e “Dez anos de escrita”: segundo a ideia da diferença entre tentar escrever e começar a escrever que Marguerite Duras definiu.
O que há, entre “Os Pregos na Erva” e “E Que Não Escrevia” é esses textos de “tentar escrever”. “O Livro das Comunidades” (1978, ed. Afrontamento) é então o verdadeiro “começar a escrever”.

Mas o assunto do nascimento não está, de todo, ausente em “Um Texto Decadente”. O texto inicia com uma citação de S. João da Cruz, “a ascese da memória/ leva à esperança”. Segundo a pequena nota de Llansol, “esta recitação decadente de um texto inspira-se no episódio bíblico de Tobias que foi levado a Gabelo em Reges por um homem que não sabia que era um anjo." (pag77). A esta história sobre um grupo de prisioneiros a ser levado para uma prisão não será também alheia à história do próprio S. João da Cruz, que como sabemos, será uma das futuras figuras de ”Geografia de Rebeldes”- a segunda em, mais particularmente, “O Livro das Comunidades”.
De certa forma, mesmo intuindo que os personagens se preparam para a morte é também certo que vemos que aqui algo se prepara para nascer. E apesar de já perto do final, uma criança nascer de Maria, sem ter sido concebida (O que volta a remeter-nos para a questão do texto bíblico.), parece-me que este nascimento é outro, significando a escrita, provavelmente.
Quando uma personagem, Ávila, sofre uma morte fictícia, é esta a descrição:

Ela, fossem quais fossem as máscaras de que se servia para esconder como era, no íntimo tinha um desinteresse profundo por tudo o que apaixonava os outros, ou o que deveria apaixoná-la segundo as numas sociais; recusou comunicar autenticamente com alguém; estava na posse das suas ideias e da sua verdade. Havia construído uma solidão defensiva e gostava de deixar vagabundear o seu espírito sem freio ou leis (…)
(pags.154,150)

Não poderá, penso eu, estar mais de acordo com a escrita de Maria Gabriela Llansol, ou com a escrita que neste tempo se desenvolvia, se a própria Llansol, colocando-se num mundo de linguagens diz que “não posso, não podemos, ir mais além do que a linguagem que vou descobrindo, vamos descobrindo.” (pag.106)
O texto, dividido em Tempos de extensão irregular, aborda vários textos bíblicos, transformando-os de acordo com o que é narrado, dando-lhes novas leituras, pautadas de uma pormenorização obsessiva, que consegue atinge o grotesco. No fundo trata-se de conceber um mundo onde a fealdade reina (Repare-se que no Tempo 3 o desenho do arcanjo é apagado da parede da prisão mas deixam-se ficar desenhos de pénis.), um mundo onde a escrita possa nascer porque tem um sentido, uma razão de ser.
Finalmente, “Um Texto Decadente” parece-me sofrer de múltiplas fragilidades, tornando-se em muitos dos seus fragmentos, confuso e excessivo, nomeadamente por questões de pontuação (Que chega a não existir.), o que pode contribuir para tornar o texto mais denso; mas também mais confuso.
Os textos bíblicos serão também uma presença muitíssimo relevante em “O Estorvo”, conjunto de contos que encerra o volume.
E, se em termos formais, “O Estorvo” se encontra mais próximo de “Os Pregos Na Erva”, a verdade é que em relação ao livro de 1962, estes textos marcam uma considerável evolução, ao mesmo tempo que também contribuem para, em muitos aspectos, podermos ver, nestes, mais definido o punho de Maria Gabriela Llansol.
Assim, “O Estorvo” volta a colocar-nos perante personagens anónimas, ou quase. E é na sua forma de viver absolutamente comum que acontecem os mais surpreendente casos. O texto bíblico é não raras vezes suporte deste imaginário (Sendo “Os Imitadores” o caso mais flagrante.), não no sentido em que Llansol os recria, mas que os questiona. Questões de sexualidade, de posse, de perda e de morte incluídas. Destes 11 contos, aquele que me parece mais relevante será “Cordeiro Negro”, que possivelmente nos aponta a questão do sacrifício, mas vai mais longe: não o trata como oferenda propriamente dita, mas como serviço aos desejos do Homem, aniquilando o sentido do homem que mata para se provar a deus.
E é curioso, porque mesmo em “O Estorvo”, há um conto que volta a abordar a questão do nascimento. E aqui justamente este conjunto de demarca de “Os Pregos na Erva”: ao passo que no primeiro estávamos perante um acontecimento prestes a acontecer e nos deixava a angustia de não chegarmos a vê-lo, em “O Estorvo” assistimos mesmo a essa contínua transformação, a esse acontecimento. A questão da violência, tão patente- a meu ver- em “Os Pregos na Erva”, mantém-se aqui, portanto, mas de forma mais acentuada.
Neste “livro” estamos perante um mundo em que os pequenos presságios se concretizam, onde pequenos acontecimentos se vão dando, principalmente nessa trama a que chamamos “as relações humanas”. Mas a sensação que “O Estorvo” nos deixa é a de que alguma coisa maior se aproxima. E é essa urgência que em nós causa maior eco.
No geral, “Depois de Os Pregos na Erva” é efectivamente a sobreposição de “três momentos de uma escrita a braços com uma história que, em português, é a da expropriação inexorável de um presente que não pode ser gerido pelo indicativo” (hors-texte) - é portanto um presente que se constrói pela convocação dos tempos passado e futuro-não só pessoais, mas também colectivos. Ainda que entre os três textos possamos encontrar várias diferenças as de uma escrita em rápida construção -podemos encontrar-lhe essa principal unidade, que não é nada estranha à escrita de Maria Gabriela Llansol.

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