sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Masters of Horror: Cigarette Burns de John Carpenter (1x08)

OS PODERES DO FILME

De John Carpenter não havíamos filme desde "Fantasmas de Marte", de 2001. Com o próximo filme já anunciado para estrear este ano, no interregno de nove anos entre ambos, além de dois dos seus filmes terem sido alvo de remakes duvidosos- "Halloween" e "The Fog"- Carpenter participou por duas vezes na série "Masters of Horror", ao lado de nomes como Dario Argento, Tobe Hooper, Takashi Miike ou Brad Anderson.



Na primeira época desta saga, John Carpenter que será provavelmente o mais absoluto mestre do horror, apresenta-nos este "Cigarette Burns".
Esta média-metragem coloca-nos ante uma situação próxima do filme-ensaio, ainda que à primeira vista isto nos possa escapar. A história é simples: Kirby Sweetman (Norman Reedus), programador de um cinema, é contratado por Mr. Bellinger (Udo Kier) para lhe encontrar um filme raro, trabalho que, aparentemente, Sweetman já havia feito antes. Mas o filme em questão é "o mais raro dos raros". Trata-se de "La Fin Absolute du Monde" de Hans Backovic: exibido uma única vez durante um pequeno festival, criou na assistência um motim sangrento de onde resultaram inúmeros mortos e feridos, levando a que a única cópia do filme fosse apreendida e eventualmente destruida. Se esta última parte era discutível, acabou por gerar uma espécie de mito urbano, segundo o qual o filme subsistira e por várias vezes haveria sido exibido em sessões clandestinas. No entanto, Bellinger tem uma fonte um tanto mais credível de que o filme existe ainda: ele tem, em casa, um elemento utilizado na rodagem. Trata-se de uma espécie de albino liliputiano, que ostenta nas costas sinais de lhe terem sido arrancado um par de asas, que Bellinger tem exposto no seu escritório. Segundo este ser, se o filme tivesse sido destruido, aqueles que, como ele, tivessem tomado parte dele, senti-lo-iam. Pressionado pelo facto de ter que pagar 200 mil dólares ao pai da falecida namorada que lhe cedera o cinema, Kirby acaba por aceitar o trabalho.

Ao longo dos cinquenta e oito minutos de "Cigarette Burns" o grande desafio, quer para Kirby, quer para o espectador, é entender que poder é esse que "La Fin Absolute du Monde" tinha, para criar à sua volta tamanha ambiência de loucura e de carnificina. É assim que Kirby encontra um crítico de cinema que desistira do seu trabalho para se dedicar a escrever uma verdadeira crítica ao filme de Backovic: crítica essa que se divide em resmas e resmas de páginas dactilografadas, e que ocupa toda a casa do crítico, que ainda nem a terminada.
Kirby acaba por se deslocar a Paris, onde o filme teria sido rodado, na tentativa de encontrar alguém que estivesse incluido na produção do filme, apesar de quase todos estarem mortos. É quando começa a ter alucinações. Vê frequentemente essa marca na película, conhecida como cigarette burn, que marca, em cerca de 0,17 segundos a transição de bobine. A partir dessa marca, tem flashbacks do momento em que encontrara a namorada na banheira, após o seu suicídio por auto-mutilação.
À medida que se aproxima do filme, estas alucinações vão-se tornando mais e mais intensas. Dos seus encontros com aqueles que o poderão levar ao filme, ele percebe que "La Fin Absolute du Monde", mais do que um filme de extremo gore, teria que ter algo de real para despertar nas pessoas tamanha violência, como deduz ao cruzar-se com um realizador enlouquecido que nem chegara a ver o filme de Backovic, mas que dele recebera vários elementos, e que assassina uma mulher à sua frente, em poucos segundos, enquanto filma, explicando-lhe como a grande descoberta de Backovic havia sido justamente que a ficção não perturbaria ninguém, e que aquele apelo ao que de mais negro existia na alma do espectador só se conseguia através do Mal em estado puro, e real: como sacrificar um anjo, arrancando-lhe as asas. Fica assim explicada a criatura que Bellinger mantinha na sua casa.
Quando, no final do filme, vislumbramos algumas cenas de "La Fin Absolute du Monde", percebemos que se trata de uma série de planos entrecortados em que a violência é efectivamente incomodativa, grosseira, penosa e arrepiantemente real, o que conduz "Cigarette Burns" ao seu final abrupto e desesperante. Os últimos segundos do filme tornam esse final um final aberto, dúbio, como tantas vezes acontece com os filmes de Carpenter.



"Cigarette Burns", apesar de ser uma média-metragem, é perfeitamente capaz de se inserir entre os melhores filmes de Carpenter.
A ideia da relação arte-vida, sendo que a loucura de uma verte para a outra, não é inédita no percurso deste cineasta. Já em "A Bíblia de Satanás", de 1995, assistíamos à loucura de um livro tornar-se a realidade do seu escritor. Em "Cigarette Burns", no entanto, o objecto, neste caso um filme, é uma espécie de paciente zero de uma epidemia de loucura violenta e aluncinada. Como ouvimos de um dos personagens do filme, "o espectador desafia o realizador a perturbá-lo". Então, o que acontece se realmente o realizador decide mesmo perturbar o espectador? O motim em que resultou a primeira exibição do filme é uma resposta interessante. Além disso, há ainda a questão do aborrecimento da ficção, dos truques levados ao extremo, do cinema ter deixado de ser "a grande ilusão", para se tornar "uma mera ilusão", em que as pessoas fazem o favor de acreditar. Carpenter coloca então a hipótese de o cinema nem sequer ser ilusão, mas registo de algo real.
E neste campo, não pensei propriamente em mais filmes de Carpenter, mas justamente num outro mito urbano (Talvez...), o do snuff-movie. O mito e o termo já fizeram parte de muitas especulações não necessariamente recentes, como a de Charles Manson: alguns teóricos afirmam a pés juntos que a família de Manson era especialista em snuff-movies. O snuff-movie consiste em, sem qualquer tipo de ficção, assassinar alguém em frente a uma câmara, para depois espalhar o resultado pela internet. Além de Charles Manson, outro famoso assassino, Son of Sam, foi também alvo do rumor de produzir snuff-movies. Apesar de já terem circulado vários filmes pela internet que aparentavam ser snuffs, até hoje, um por um foram provados falsos, sendo que os únicos verdadeiros incluem apenas animais.
Propositadamente ou não, Carpenter traz também este assunto em "Cigarette Burns", pois afinal, o filme que retrata uma violência não-forjada teve um impacto tremedo, muito difícil de igualar por qualquer bom filme.
O que pode o cinema ainda fazer? O que esperam as pessoas ainda ver? Que influência pode a vida ter na arte, e a arte na vida? Todas estas questões parecem passar-nos pela cabeça ao longo de quase uma hora em que somos sugados para dentro deste universo doentio e exasperante.
Como se toda esta pungência não fosse suficiente, "Cigarette Burns" é ainda um filme de planos fantásticos, com a atenção aos espaços a que Carpenter, o mais arquitectónico dos realizadores, nos habituou, e uma música brutal, composta por Cody Carpenter, capaz de aumentar em nós o calafrio que as imagens já têm toda a probabilidade de criar.
O único defeito que realmente me sinto capaz de apontar a "Ciagrette Burns" é mesmo o facto de ser uma média-metragem, porque a verdade é que não é difícil sentirmos que há aqui material para uma longa.
Se ainda precisávamos de provas de que, desde o longínquo "Dark Star" de 1974, John Carpenter cresceu para ser realmente o mestre do cinema de terror, "Cigarette Burns" pode muito bem ser a prova dos nove.



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