quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Luísa Dacosta: Na Água do Tempo

DA POEIRA DOS DIAS

Depois do diário mais recentemente lançado de Maria Gabriela Llansol, regresso ao tema dos diários, com Luísa Dacosta. Para evitar repetir tudo o que disse sobre o conceito de um diário publicado, prefiro situar este livro na bibliografia da autora.
.


Para todos os efeitos, Luísa Dacosta nunca foi propriamente uma ficcionista, no sentido mais comum do termo: Luísa Dacosta não se interessa por criar enredos; os seus livros incluem crónicas, retratos, observações do real, tal como acontecia com, por exemplo, Irene Lisboa, mas, e aí difere já de Irene, interessando-se muito pelo imaginário e pelo dia-a-dia do interior, da província (Como se chamou o seu primeiro livro, em 1955.), em particular a cidade de Vila Real, onde nasceu, e a vila de A-Ver-o-Mar. Questões feministas não lhe passaram ao lado, portanto encontramos frequentemente os problemas da mulher, vistos de uma forma implacável, que não é crueldade mas denúncia. Além de numerosos livros de contos ou de crónicas, contam-se ainda três pequenos livros de poesia, um de notas de leitura, e vários livros infantis. Interessa inventariar tudo isto porque "Na Água do Tempo" (ed. Quimera, 1992, reed. Asa, 2002), primeiro de dois diários publicados não funciona como o tal diário que nos mostra o dia-a-dia da pessoa, mas precisamente abarca todos os géneros que Luísa Dacosta percorreu desde a sua estreia. Inclusivamente, se pesquisarmos um pouco, veremos que muitas destas entradas haviam já sido publicadas, sob forma de crónicas principalmente, em dispersas publicações, nomeadamente a "Colóquio/ Letras".
Estamos perante um diário bastante extenso, que começa em 1948 (Sete anos, portanto, antes da publicação de "Província".), tinha a autora 21, e termina em 1987, aos 60 anos. Este diário, como explica o prefácio, texto verdadeiramente poético, mostra-nos o que Luísa Dacosta guardou da poeira dos dias (pag.11).
Podemos encarar este livro como mais um da bibliografia de Dacosta. "Na Água do Tempo" tem essa particularidade de se inserir perfeitamente no contexto de outras obras como "Corpo Recusado" (1985) ou "Morrer a Ocidente" (1990), na maioria das suas páginas. São textos de uma pungente beleza, e de uma incisiva observação do real, no mesmo registo simples e certeiro que encontramos noutros escritores de uma certa tradição realista (Diferente de neo-realista.), como a já referida Irene Lisboa, ou Ilse Losa, e, de certa maneira, às vezes não nos parece errado lembrar Agustina Bessa-Luís, em páginas de uma certa sagacidade e ironia. Luísa Dacosta é verdadeiramente dotada de um olhar atento a todos os detalhes, recriando com toda a desenvoltura longos diálogos com pessoas encontradas ou observadas na rua. Não estamos a ler uma autora que viva dentro de uma espécie de mundo interior, mas de uma observadora que fixa o exterior através de uma visão própria do real. Estas páginas encerram assim várias localidades (Vila Real, Porto, Matosinhos, Lisboa, Estoril, Régua, Rio de Janeiro, Londes, Díli, Vila do Conde, A-Ver-o-Mar, etc.) abordadas sumariamente na sua construção, mas densamente no seu lado vivido, e então encontramos surpreendentes análises sociais, tanto do ponto de vista da autora como do ponto de vista das pessoas, em particular o lado popular, mais do que o erudito, onde Luísa Dacosta encontra tantas vezes esses aforismos que, despidos que qualquer inquinação erudita, acabam por resumir a vida perfeitamente. Daí que certas passagens nos pareçam tão susceptíveis de ser incluidas entre os restantes livros da autora, os de crónicas.


Mas também a leitura e os livros encontramos em "Na Água do Tempo". Recorde-se que em 1960, Luísa Dacosta publicara "Notas de Crítica Literária" (ed. Divulgação), tendo entretanto alterado o título para "Notas de Leitura". No seu diário, cruzamo-nos com verdadeiros ensaios, sobre Camilo Pessanha, Irene Lisboa, José Régio, Cecília Meireles ou Aquilino Ribeiro. Estes textos têm a particularidade de se centrarem essencialmente numa perspectiva de leitor, em vez da tonalidade cada vez mais comum e mais aborrecida da análise da faculdade (Apesar de Luísa Dacosta ser realmente formada em Historico-Filosóficas.), e portanto, encontramos nestas páginas uma leitura apaixonada dos escritores em questão, em que os versos se abrem a novos sentidos. A paixão pelos escritores dar-nos-á também pungentes entradas, por exemplo, aquando da morte de Irene Lisboa ou da visita de Luísa Dacosta à casa onde vivera Cecília Meireles.
Além da literatura, também a pintura mereceu à autora algumas páginas de análise, uma vez mais uma análise que se pretende (E se consegue.) pessoal, mais do que técnica. Os pintores que aqui encontramos são aqueles que, afinal, foram próximos da escritora, participando com ilustrações em vários dos seus livros: Armando Alves, José Rodrigues, Jorge Pinheiro. Mais surpreendentes ainda são os comentários que Luísa Dacosta escreve, quando, em Março de 1984, visita com uma amiga uma exposição de arte naif: Que me dizem? Infância antes de tudo. (...) Infância, não apagada, mesmo naqueles que tiveram uma vida de luta (...) (pag.322).
A infância acaba por ser outro dos assuntos recorrentes nos livros de Luísa Dacosta, pois, como lemos na nota biográfica da badana, alguma coisa deve aos alunos: o ter ficado do lado do sonho. E portanto, essa procura do olhar infantil, impoluto, pauta também algumas destas páginas. Mais ainda, encontramos entre 1971 e 1972 os textos que integraram o Exame de Estado de Luísa Dacosta. Neles nos cruzamos frequentemente com esse contacto com os alunos, com os problemas da infância, mas também com o olhar simples sobre o mundo com que a autora, na sua sensibilidade, se cruza profundamente. E encontramos mesmo as dificuldades de uma mulher de pensamento moderno e culto tentando transmitir essa cultura aos alunos, e o sistema recusando essa renovação.

Dos géneros publicados pela autora, falta referir ainda a poesia. Os três volumes de poesia publicados, "Nos Jardins do Mar" (ed. Figueirinhas, 1981), "À Sombra do Mar" (ed. Câmara da Póvoa de Varzim, 1999) e "A Maresia e o Sargaço dos Dias" (ed. Asa, 2002) dão-nos conta de uma sensibilidade apurada, despida de quaisquer formalismos, e que traça uma ponte em relação à restante obra. Mais ainda, estes três livrinhos de poesia confirmam-nos que a linguagem de Luísa Dacosta, nos seus outros livros, nunca abdicou de uma sensibilidade extremamente poética. Quando, neste diário, lemos determinadas passagens, não é difícil concebê-las como poemas em prosa. Mais ainda, em Novembro de 1970, encontramos apenas a seguinte frase:
.
Todo o ouro do outono e a tua ausência.
(pag.172)

é difícil não a conceber como poema, sendo uma frase tão sintética, tão valiosa pelo pouco que diz o muito que fica não-dito. É essa relação entre o que é escrito e o que é intuído que vale a "Na Água do Tempo" muitos dos seus mais belos momentos.
Ainda de referir são os relatos da estadia da autora em Díli, após o 25 de Abril de 74, em que o falhanço do projecto de educação conduz a autora não só ao relato impiedoso das condições de vida e da fuga do local, como também a analisar, à margem de qualquer histeria, as dificuldades com que a democracia se debatia nos seus primeiros tempos.
Sobre os livros, vamos encontrando uma ou outra referência, por vezes a questões de edição, comentários às artes gráficas, às ilustrações, e uma ou outra vez refere o processo de escrita ou de organização dos livros. Mas não encontramos aqui detalhes sobre essa construção, essencialmente por dois motivos: o primeiro, e já referido, é que este livro, apesar de responder perante a especificidade de "diário", pode perfeitamente ser entendido como mais um livro de Luísa Dacosta, com a diferença de que cruza vários géneros e intercala com eles alguns detalhes quotidianos; o segundo porque esses livros de Luísa Dacosta seguem esta mesma construção, não precisando, portanto, de complexas explicações ou justificações.
"Na Água do Tempo" é, portanto, um exemplar belíssimo de um livro, diário ou não, onde encontramos, mais do que histórias, uma série de textos que nos revelam, isso sim, de forma mais directa ainda todo o pensamento do projecto de escrita de Luísa Dacosta, a sua sensibilidade e as suas ideias. É certo que essas ideias fizeram dela uma escritora de certa forma "marginal", ou pelo menos exterior aos circuitos mais imediatos, o que aconteceu com outros autores que não quiseram inserir-se na esfera dos géneros comuns, caso uma vez mais de Irene Lisboa. Mesmo assim, este livro não deixa de ser uma boa oportunidade de entender plenamente esse projecto que, a meu ver, permanece numa espécie de sombra há tempo demais. Porque Luísa Dacosta tem essa capacidade de nos levar a descobrir um outro lado, sensível essencialmente, dos lugares que conhecemos: sejam ele a cidade ou a nós mesmos, de certa forma. É esse o seu eco principal.



(Nota: a primeira edição, da Quimera, tem em hors-texte o desenho a pastel de Maria Mendes reproduzido acima; a segunda, da Asa, inserida na colecção das Obras Completas de Luísa Dacosta inclui uma sobrecapa com uma pintura de Armando Alves.)

Sem comentários: