terça-feira, 27 de julho de 2010

1959, Janeiro, Porto



No salão de cima (era todo envidraçado e a rua penetrava-o) havia sempre muita gente. Mas na cave, que os espelhos tornavam de uma solidão maior, as mais das vezes um dos criados encostava-se ao balcão, enquanto o outro servia, sem pressa, os poucos frequentadores. Só ali vinham alguns estudantes decorar, entre fumaças, estafada sebenta, bichanando teoremas e fórmulas, sorvendo golpes, curtos, de líquido fumegante, os que tinham encontros, mais ou menos clandestinos, e dali partiam para uma aventura de amor à hora, em quarto alugado, ou pequenos burgueses sem requintes que discutiam a bola e o avançado centro- "bestial!"- para provarem que estavam vivos e neste mundo. A gerência podia permitir-se aquela tolerância de o deixar dormitar diante da mesa vazia, naquele ambiente aquecido a bafo humano e vapores de café, ao abrigo do nevoeiro que lá fora engolia tudo ou da geada que embaciava as montras e arrefecia os relfexos nos paralelepípedos da rua. Cosido com um canto do café "reservado a senhoras e suas famílias", segundo rezava o letreiro suspenso, parecia um trapo enrodilhado. A gabardina de uma cor indecisa e asfiapada pingava-lhe sobre os sapatos, demasiado grandes, acharlotados. O chapéu cobria-lhe o rosto até ao bigode, murcho, caído, quase a tapar a ranhura dos lábios, fechados, sem desejos. De perto viam-se-lhe à volta dos olhos trémulos, vivos, das veias, vermes saindo do ninho das órbitas e passeando-lhe a cor funérea, onde a barba grisalha, de véspera, punha uma poeira de cinza, que parecia alastrar naquele meio silêncio, raro, cortado.

_Um carioca de limão.
_Café e bagaço.
_Um maço de Porto.
E era tudo. As ondas de sossego, escorraçado, voltavam e espraiavam-se pelas cadeiras vazias. Recomeçavam a conversa entre o criado e o homem do bar, sobre aquele atraso de vida da doença da mulher que tinha de ser operada, do desarranjo do filho mais novo ter de ir para a casa dos avós e ser preciso ir levá-lo, pois não se podia meter uma criança daquela idade sozinha num comboio. O outro ouvia-o distraído, já sonolento, a pensar na vida dele, nos problemas dele, nos pés dele, enganando o cansaço, despertando-se com aquele passeio enjaulado e maquinal, que o gesto da limpeza do balcão acompanhava. Os ruídos do andar de cima chegavam distantes, amortecidos, e era já menor o ruído, tinido, de louça e talheres. O relógio marcava onze e vinte. O homem cosido com o canto do sofá tinha adormecido e o cachecol de lã preta e ensebada guilhotinava-lhe a cabeça que as cordas dos tendões quase não sustinham. Os espelhos multiplicavam a satisfação, estomacal, dos poucos que tomavam café. O colorido dos painéis, o brilho, o mel e o conforto, das luzes. O dourado, sereno, da estatueta. O homem. O homem. O homem. O homem. Como eco. Ou nódoa que tivesse alastrado.

Luísa Dacosta
Na Água do Tempo, diário
1992, ed. Quimera
imagem de Toulouse-Lautrec

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