quinta-feira, 6 de maio de 2010

um poema



As sereias transformaram-se em gaivotas.
Repousavam
sob essa forma aérea entre a duna
e a onde, banhando-se no sol. Duas ternuras
moviam-se em charneira, faces
de concha bivave que formavam- era
ainda uma composição marítima onde
os próprios anjos
se inscreviam (é certo
serem anjos primários, sem metafísica,
um deles mesmo repetente.) Cito
esse conjunto
porque me pareceu paradigmático: chave
em plena tarde
rodando a lingueta de um nirvana;
a minha boca dizia no siêncio
as orações correspondentes. A vida
estava imóvel
como um tecido celular e dediquei
ao oceano
o último acto: voz de água
na linha exacta da praia, calma vital,
língua na bainha, olhos
postos no carregar de imagens ao relógio.
Ali o ser
e o tempo atravessavam o anel
onde se prende
a erva renascente. Escrevo
a partir daí este poema, a fidelidade
a um céu sem nuvens; também
no mesmo anel me enrolo
e o tema
é que o momento se eternize. O tema
e o seu código: as zonas
quentes do inverno.






Egito Gonçalves
As Zonas Quentes do Inverno
1977, ed. Inova
imagem de Edward Hooper

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