quinta-feira, 4 de março de 2010

José Saramago: Caim

A REDENÇÃO DO ASSASSINO

“Caim”, o mais recente romance de José Saramago não podia ter sido mais aproveitado pelos media, tendo, por muitos, sido inclusivamente recebido com uma estranha surpresa. O que acho estranho. Para ser mais imediato, poderia referir o romance publicado em 1991, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” como romance de heresia, mas ao longo da bibliografia de Saramago, livro a livro, é frequente que este se manifeste claramente contra o catolicismo e, em última análise, contra a própria figura de deus.
É-me então difícil perceber o escândalo gerado por “Caim”. Escândalo maior foi, para mim, que no dia seguinte ao seu lançamento, o livro estivesse já a ser alvo de todos os ataques e todas as considerações, dado que, penso, um dia não será suficiente para ler, ou ler plenamente, este ou outro romance.

Outra questão que importa referir ao falar de “Caim” é a de todo o jogo de ataques e contra-ataques que o romance gerou.
Em entrevistas e depoimentos, o Nobel refere a bíblia como “um manual de maus costumes e um catálogo da crueldade”. Ora e isto, que poderia surgir como uma pequena observação da parte de José Saramago é, na verdade, uma das maiores matrizes de “Caim”.
Caim, assassino de seu irmão, e condenado por deus (Ou o senhor.) à errância durante toda a sua vida é, claramente, personagem central deste romance, mas não é a sua errância, o seu percurso, o verdadeiro tema deste romance.
A errância que José Saramago atribui a Caim é mais uma passagem pelos momentos bíblicos que, de facto, sustentam a ideia do “manual de maus costumes e catálogo da crueldade”. Por assim dizer, este é um romance principalmente argumentativo, onde Saramago prova, por A+B, e com toda a eficácia, essa sua opinião (Que, acrescento a título pessoal, corroboro por inteiro.).
Caim inicia o seu percurso nas terras de Nod, onde se envolve com Lilith, mas passa pela Torre de Babel depois desta ter ruído, presencia o quase sacrifício de Isaac por seu pai Abraão, a destruição de Sodoma e Gomorra, a desgraça de Job, etc.
Neste último caso, Job, homem próspero e fidelíssimo a deus, é vítima de todas as possíveis desgraças, impingidas por Satã na consequência de uma aposta com deus. A Torre de Babel foi destruída por deus para que os homens não pudessem atingir o céu. Abraão sacrificaria o seu filho para provar a sua fé em deus.
No particular caso de Job, intervém a figura de Satanás. E aí, Saramago não o coloca como antítese de deus, antes como um servo insubordinado.
Porque, ao longo de “Caim”, o verdadeiro antagonista de deus não é outro senão Caim. É Caim quem, na verdade, vê o suficiente para poder duvidar de deus, ou do conceito normalizado de deus. É Caim quem, em último caso, confronta deus com a sua crueldade, a sua frieza e a sua natureza megalómana e totalitária. Ou seja, uma natureza de ditador.
Mais ainda, Caim é confrontado com a duplicidade da sua relação com deus: que pacto foi este entre os dois, em que deus lhe diz que estará condenado a errar enquanto viver, mas que ninguém lhe fará mal, pois estará protegido pela marca negra na testa?
O deus que Saramago nos apresenta não é, pois, uma concepção gratuitamente análoga daquela que a sociedade em geral tem dele. Essa analogia é, efectivamente, muito bem sustentada: deus é um ser confuso (Por exemplo no seu pacto com Caim.), sedento de poder (Por exemplo, a conquista de Jericó) e de provas dele (O sacrifício de Isaac.), pouco inteligente por vezes (Ordenando a Noé que construísse a sua arca num vale, longe de água, onde, logo que viesse o dilúvio, a arca de afundaria.), e, acima de tudo, não é todo poderoso. Neste último aspecto, Saramago utiliza a história de que, na batalha contra os amorreus, deus fez o sol (Ou a Terra.) parar para perpetuar o dia e manter a batalha. Vale a pena reproduzir um excerto da conversa do senhor com Josué:
“Não posso fazer parar o sol porque parado já está ele (…) Algo se move realmente, mas não é o sol, é a terra. A terra está parada, senhor, disse Josué (…) se assim é, manda parar a terra, que seja o sol a parar ou que pare a terra, a mim é-me indiferente desde que possa acabar com os amorreus. Se eu fizesse parar a terra, não acabariam só os amorreus, acabava-se o mundo (…) Pensei que o funcionamento da máquina do mundo dependesse apenas da tua vontade, senhor, Já demasiado eu a venho excedendo (…) é que a vida de um deus não é tão fácil quanto vocês crêem, um deus não é senhor daquele contínuo quero, posso e mando que se imagina, nem sempre se pode ir direito aos fins, há que rodear (…)" [pág.124-125]
Na última das suas sequências, a que corresponde à arca de Noé, é que definitivamente “Caim” retira de Satã o peso do anti-cristo e a coloca sobre Caim, sendo este que, verdadeiramente, faz frente a deus e aos seus desígnios. No fundo, Caim, o assassino de seu irmão, acaba por perceber a insignificância do seu acto, face aos actos daquele que o castigou pelo seu crime.
Em última análise, mostra que deus não tem sequer poder sobre os actos dos homens, e muito menos conhecimento do futuro ou do destino, caso contrário, a condenação natural do Caim de Saramago teria sido a sua morte, e não a errância pelo tempo.


Como romance, “Caim” não desilude, mantendo-se dentro do ciclo restrito das melhores obras de José Saramago. Por um lado, alude à fase histórica dos romances iniciais (Como sejam “Levantado do Chão”, “Memorial do Convento” ou “O Ano da Morte de Ricardo Reis”.), mas, pelo tratamento que dá à história, mostra-se também muito próximo dos romances pós-modernos (Em que poderíamos incluir “Ensaio Sobre a Cegueira”, “Ensaio Sobre a Lucidez” ou “As Intermitências da Morte”.), dado o desenrolar praticamente livre de historicismos do romance, acrescido ainda de uma vertente altamente filosófica (Que poderemos reconhecer em “Todos Os Nomes” ou “O Homem Duplicado”.) que é toda a relação directa ou indirecta entre Caim e o senhor nos vários episódios do romance.
A única falha possível neste livro, será a diferença entre a premissa prometida pelo título, que nos relatasse a errância verdadeira de Caim, e “descambar” para uma errância conduzida por José Saramago. O que não tem que ser defeito, e, neste caso, resulta até bastante melhor.
De qualquer forma, a visão fria e crua de José Saramago sobre a bíblia, vem confirmar uma frase que Woody Allen escreveu há uns anos “Se deus existe, é melhor que tenha uma boa desculpa”.

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