terça-feira, 27 de janeiro de 2009

enterrar a pátria

Hoje, como de resto faço todos os dias, voltei da faculdade e fui para o café tentar não adormecer, e comecei a discorrer interiormente sobre o que estava a ver na televisão. Era uma reportagem sobre um jogo qualquer, em que o focado principal era Cristiano Ronaldo, essa peça.
Felizmente, já acabou, pelo menos parcialmente, a febre de Cristiano Ronaldo, que consumiu a televisão durante semanas, após ele ter ganho um prémio qualquer. Por sorte, há quase três anos que, salvo raras excepções, desisti da televisão. Mas, não o nego, gosto muito de estar em cafés, cafés esses que por norma têm uma televisão pela qual ocasionalmente passo os olhos. E, nos útlimos tempos, raios me partam se sempre que isto acontecia não se estavam a passar programas sobre Cristiano Ronaldo ou a anunciar os mesmos.
Palavra que não percebo nada disto.
Tivémos uma cantora como mais ninguém teve, e que teve que morrer para que a caixinha que terá mudado o mundo, lhe dedicar um grande documentário. Refiro-me a Amália que, parece-me, terá deixado descendência, directa ou indirecta. Exemplo de Mísia. Há alguns anos, recebeu a título de Cavaleiro das Artes e das Letras em Paris, e ninguém fez metade deste escândalo a propósito disso. Pergunto-me eu por que razão temos que ser plasmados com a suposta grandiosidade dum arruaceiro que dá uns chutos numa bola, e quase não somos avisados de um prémio de muito mérito de uma pessoa que há anos quebra barreiras e consegue sempre ser indiferente aos puristas que a acusam de não estar a cantar fado.
Também não percebo o porquê de espaços como o DeLuxe ou o FamaShow, mas a propósito destes, que em tempos já tive a infelicidade de ver, nem que por segundos, relembro a frase fantástica da tia de todos os portugueses, Lili Caneças, que, com uma inteligência inesperada nos diz que
_Estar vivo é o contrário de estar morto.
Ora, realmente, a própria provavelmente não faz a mínima ideia da razão que tem. Portugal é uma pátria de mortos. Alguns deles já mortos mesmo, outros ainda não.
Refiro-me aos nossos artistas, e àqueles que, como eu, aspiram a sê-lo um dia. Senão vejamos o que é feito de nomes como Luiza Neto Jorge, Luiz Pacheco, Wanda Ramos ou outros. São pessoas que uma determinada elite conhece e para o comum dos mortais é perfeitamente desconhecido. Os nossos editores, supostamente os grandes defensores dos livros, não fazem um esforço por que tal não aconteça- Onde estão as reedições? Há uma obra completa de Luiza Neto Jorge, mas, a meu ver, um tanto mal alicerçada.
Onde estão os documentários sobre pessoas como Yvette Centeno, Isabel de Sá, Regina Guimarães…? Estão à espera que morram para lhes dar o mérito que merecem?
A papelaria onde costumava comprar a Magazine Artes deixou de a pedir porque só vendia um exemplar por mês (O meu.). Os livros da &etc estão à venda em lugares muitíssimo específicos. As prateleiras de poesia nas livrarias passaram de certeza pelo “Doutor Preciso de Ajuda”, porque emagrecem a olhos vistos. O mau gosto é uma constante em todas as publicações mais megalómanas. As edições de autor nem sequer estão disponíveis para que lhes possamos passar um olhar mais crítica. Os jornais e revistas contentam-se com destaques a pessoas já conhecidas, o que até já é bom, mas por norma dão pouca atenção aos nomes emergentes ou mais escondidos. Nem sequer fomos (Público.) avisados de que o PEN Clube vai a eleições, e que Ana Hatherly e Casimiro de Brito poderão deixar a presidência deste.
Livros aparte, porque é que os bons filmes passam, no caso do Porto, por norma apenas no Cidade do Porto? E as retrospectivas? Nunca ocorreu aos senhores da programação fazer antologias, como se vão fazendo no Teatro do Campo Alegre e no Fantasporto? O Filipe LaFeria faz o que quer no Rivoli, e ainda se recusa a retirar os enfeites de Musica no Coração durante o Fantas. O Pedro Mexia ameaça tomar posse da Cinemateca. As exposições em Serralves são cada vez mais elitistas na escolha dos artistas e daí, excessivamente mainstream. Em que país estamos nós?
Tenho que ir no metro e no comboio a ouvir um bando de broncos a falar aos berros, a dizer palavrões e a ser ordinários, porque ninguém está interessado em educá-los. Na escola lá se vão repetindo os mesmos valores balofos de há não sei quantos anos, que à maioria entra a cem e sai a duzentos, Sócrates vai dando uma muito rara palmada nas costas ao Ministro da Cultura que, diga-se de passagem, tem feito bem menos que eu pela cultura (E eu não faço muito pela dos outros, estou sinceramente mais preocupado com a minha.). Os professores são achincalhados com reformas e mais reformas inúteis, e não se reforma aquilo que é ensinado ou a forma como deve ser ensinado. Os autores são assassinados nas aulas de Português porque nos livros está escrito que eles devem morrer.
Nisto tudo, palavra que não percebo por que raio me deveria interessar pelo Cristiano Ronaldo…

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Al Berto: Lunário

OLD SCHOOL REMEDIES

Vergonha ou não, só agora li “Lunário”, obra em prosa escrita em 1988 pelo por norma poeta Al Berto. Confesso que nunca senti grande atracção pela obra deste escritor, por me ter cruzado com vários poemas em que o espectáculo parecia sobrepôr-se ao conteúdo.
No entanto, renego completamente esta visão, pelo menos no que toca a “Lunário”.
É uma história de solidão, acima de tudo. Inevitavelmente passa pelo amor, mas o que “Lunário” realmente tem de bom e o que lhe confere uma excelente carga emotiva, é a sensação de deserto interior, que se encontra, por exemplo, em alguns poemas de António Ramos Rosa, ou, porque não, nalguns poemas de Al Berto.

Um abandono curado com sexo, com droga, com álcool, enfim, old-school remedies. Homossexual assumidíssimo, Al Berto é, no entanto, dos que não se pode queixar que a imagem dos homossexuais é denegrida, uma vez que ele próprio faz a descrição de um ambiente em tudo decadente.
Mas, concretamente sobre a história de “Lunário”, nada nela é particularmente inovador, o que não implica que o livro seja mau, que não é. É, parece-me, um relato acima de tudo emocional e bem conseguido, pois, em vez de ceder à ideia de uma amor gratuito, Al Berto mostra-nos como nada é suficiente para encher a solidão de Beno, o personagem que vamos seguindo. É seguindo-o que vamos encontrando o ambiente da noite onde todos se vão deixando morrer aos poucos, os engates de rua, a fácil morte de quem lhe é próximo, e, essencialmente a perda.
Encontramo-lo algures numa fase em que vagueia por um país, só sentado num quarto de pensão. Adormece e vai desenrolando o seu drama pessoal: memórias da mulher com quem viveu e viajou e teve um filho, Alba; de Nému, um rapaz que conhece e de quem nunca chega a saber o verdadeiro nome, apesar de terem vivido juntos vários anos; de Kid, uma espécie de travesti cuja personalidade, ao mesmo tempo que funde o masculino e o feminino, funde a vida e a morte; de Zohía, com as suas alucinações que acabam por levá-la a um hoospício; de Alaíno, companheiro de Zohía, que acaba por ter que lidar com a “morte” metafórica da companheira; de um casal que gostava de assaltar casas apenas para ter sexo em camas alheias.
Uma espécie de odisseia invertida. Em vez de uma aventura é mesmo uma desventura, porque, por mais que possa encontrar alguma estabilidade, a vida de Beno caminha sempre para uma espécie de perdição, de vazio, de solidão com o corpo. Aliás, o narrador diz-nos, logo no princípio, “o corpo magro que transportara de um lado para o outro, sem descanso, fora sempre a sua única morada.” (pag.18). Como todos nós, de resto.
Inevitável, no entanto, entre tudo isto, é tirar-se uma leitura possivel, que não deixa de ser um tanto desagradável por ser moralista: pode este deserto ser um “castigo” de Beno por ter levado uma vida em que, nas palavras do próprio, não teve medo de si mesmo? Al Berto não é muito claro nisso. Somos tentados a seguir a ideia de que Beno é um sujeito que não pode existir a não ser no deserto, mas tal é apenas deixado implícito.
Talvez não seja muito exacto falar de “deserto” acerca de Beno, ou de toda a ambiência de “Lunário”. Não é exactamente um deserto, porque a vida deste personagem é construída sobre um vai-e-vem de pessoas: chegam e, conforme chegam, acabam por partir, por se perder de alguma forma.
E Al Berto é realmente muito verista no relato da tristeza e do isolamento que tudo isto causa no interior do seu personagem. Estamos, parece-me, perante uma obra em que a ficção e a auto-biografia se misturam consideravelmente.
Também de destacar é a capacidade descritiva, tanto de elementos psíquicos como físicos que o autor revela.

sábado, 24 de janeiro de 2009

hoje

atiraram-me com isto para cima...

"e o pior é que eu gosto"

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

hoje

na minha aula de Geometria disctuiu-se esta voz.

sinto-me no direito de achar que tenho mais razão que a minha professora, porque acho que esta voz é brutal.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

cadavre exquis

por João Borges, Sérgio Marafona e Cátia de Almeida

Eu começo: Assim começa:
Era uma vez da praxe, coiso e...
Gostei de ver, estavam todos de kit.
Havia um peixe que fumava haxixe, mas nunca
conseguiu atingir o orgasmo por isso...
Tal como o Paulo S. organizei o meu arquivo!
Um dos livros falava de uma mulher que só comia paus de champagne.
É obvio que paus de champagne é uma metáfora metaforicamente metafórica.
Sim, ou não? Paus de champagne fariam muita gente feliz.
Ou outro tipo de paus.
De repente o Capuchinho Vermelho percebe que há pedras à beira dos paus. O que é estranho visto falarmos de escudos e não de euros.
Euros não é uma cá com capuchinhos... Faz-me lembrar a Cinderella, puta e drogada, a sonhar com o baile dos gigolôs.
Ou da Linda Reis outra vez no Herman Sic. É frustrante pensar...
Por falar em "Linda" e em "Herman" e como toda a gente sabe da cor do cabelo do Herman. E por falar em cabelo...
Por falar em cabelo, lembro do cabelo do nosso "Casper" que aqui há uns anos não tinha nem um fio mas que agora anda para aí todo casparizado do cabelo.
As pessoas e os fantasmas crescem e ganham novas características. Neste caso, trata-se do príncipe que ascendendo a rei, tem um manto (de caspa) sobre os ombros. Mas podiam ser pelos púbicos em vez de cabelo.
A omnisciência dos fantasmas faz com que a sua magnificiência transceda os frutos silvestres. Gostas de amoras? Vou dizer ao teu pai que já namoras.

(feito durante a meia hora em que se discutiu a data de entrega do trabalho de História da Arquitectura que tínhamos acabado de entregar.)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

porquê que janeiro tem que acabar???

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Natália Correia: Sonetos Românticos

AMOR, MORTE, POESIA. “MAIS LUZ! MAIS LUZ!”

Iniciada em 1947, a obra poética de Natália Correia destaca-se das suas contemporâneas por conseguir coadunar uma forma clássica ou erudita a um conteúdo original e próprio, associável facilmente a um surrealismo tardio onde se podem incluir Herberto Helder ou Luiza Neto Jorge: já mais longe do hermetismo lírico de Cesariny, mas mais próximos de uma modernidade de tratamento da própria poesia.
Natália, dos três, terá sido, definitivamente a mais mediatizada: Herberto silencia-se nos anos 80, Luiza interrompe a produção poética a partir de 1973 (Vindo a publicar postumamente “A Lume”.). Natália, por outro lado, constrói um percurso individual, vasto e coerente. A par com questões literárias, participa activamente na vida política do pós-25 de Abril e nunca deixa de estar inserida numa determinada elite lisboeta que passaria pelo Botequim, casa de fados que a própria possuía.

A sua produção começa no romance, “Anoiteceu no Bairro”, em 1946, obra onde revela uma maturidade e capacidade analítica surpreendente para os seus 23 anos.
Foi no ano seguinte que se estreou na poesia: “Rio de Nuvens” teria sido escrito por volta dos dezasseis anos da autora. Como ela própria explica no prefácio à sua “Poesia Completa” (edições Dom Quixote, 1999), este livro teria sido vítima de cortes de certos poemas por parte do autor do prefácio, que “exagera a tónica de se passar” por mestre da poeta. Mesmo assim, não há como negar que em “Rio de Nuvens” é de prever um futuro interessante no que toca à poesia. Tal não aconteceu, pois todas as expectativas que este debut pudesse criar foram definitivamente ultrapassadas. Fiel ao seu estilo, Natália erigiu, até à morte, em 1993, uma das obras de maior importância e qualidade da história da literatura. Obras como “Dimensão Encontrada” (1957), “O Armistício” (1985), “O Vinho e a Lira” (1966) ou (Apesar do péssimo título.) “Poemas” (1955) falam por si e, certamente, confirmam o que disse.

Mas “Sonetos Românticos” é um livro que não pode ser incluído em qualquer ciclo que a poeta tenha atravessado ao longo do seu percurso. Se podemos entender que “O Anjo de Ferro à Entrada do Ocidente” e “Epístola Aos Iamitas” formarão um ciclo mais politizado ou de “Dimensão Encontrada” a “O Dilúvio e a Pomba” encontramos uma fase densamente metafórica ou metafísica, a verdade é que “Sonetos Românticos”, última obra poética publicada por Natália Correia, em 1990, constitui um livro singular e sem equivalentes.
É verdade que já “Epístola aos Iamitas” (1976) fora inteiramente redigido em sonetos, ou que em inúmeros dos seus livros o tema dos amantes e do amor romântico surge, se não continuamente, pelo menos constantemente. “Sonetos Românticos” é outra coisa.

Logo ao começar, lê-se em epígrafe “Visando a unidade,/ o soneto é o ouro/ da culminação da Obra Poética.”
Estamos, portanto, perante uma poeta que se confronta com a proximidade da morte. Novidade nenhuma a morte na poesia de Natália. No livro anterior, publicado cinco anos antes, a morte era quase assunto omnipresente. Mas aqui não se trata da morte, mas sim da nitidez com que agora esta é vista. É, pois, alguém que sente o fim a chegar. O fim de tudo. Até da Obra Poética, a sua culminação.
O soneto, forma que já muito dissera a Florbela Espanca, Antero de Quental , Camões ou Bocage, é o assunto central do primeiro capítulo deste livro. Quatro sonetos sobre sonetos, “Ars Aurifera”. Interessante será citar precisamente o início “Do soneto que sémen e ovo inclui”, ou seja, o soneto é aqui chave por representar o uníssono do masculino e do feminino, esse “Misterioso nó que em sacra escrita/Cismos e abismos une.”
A outra parte do título diz respeito ao “romântico”. À vista desarmada poder-se-ia pensar que se trata de um livro de sonetos de amor. Mas a palavra “românticos” assume aqui um outro significado, englobando também este primeiro: a apropriação de uma linguagem mais ligada à poesia romântica de Garrett, por exemplo. E, ainda que continuemos a sentir um forte eco do surrealismo e até de um certo simbolismo, aqui, a linguagem é realmente outra, mais interior, menos imagética, mais psíquica. Não é uma característica que se aplique a todos os poemas, mas à maior parte.
O segundo capítulo vem evidenciar também a recusa a um certo surrealismo. “Rogando à Musa que Torne Claro o Coração Obscuro”. O que se nota, também, ao longo desta leitura, é uma procura de clareza e de limpidez como nunca se vira em Natália Correia (Com excepção, possivelmente, dos raros poemas em prosa que foi incluindo nos seus livros.) A proximidade de um fim, efectivamente, pode induzir o poeta a querer esclarecer em definitivo a sua poesia, ou pelo menos, assim parece acontecer aqui.
É interessante aqui um parêntesis para um paralelismo: Luiza Neto Jorge, outro dos nomes desta “onda”, manteve características surrealistas no grosso da sua obra entre 1960 e 1973. “A Lume”, livro póstumo publicado em 1989, no entanto, surgia com uma outra clareza de discurso, uma linguagem mais depurada e mais simplificada onde também se notava a consciência do declínio do corpo e da vida a esmorecer aos poucos.
O declínio do corpo faz-se sentir raramente aqui, mas, mais à frente, no soneto “O Espírito”, sente-se, porque “cruentas/ Rugas me humilham. Não mais em estilo brando.”
Mas, sendo este um espírito de reflexão e de derradeira retrospectiva, não é de estranhar que o terceiro capítulo, “Mãe Ilha” vá resgatar as figuras marcantes não na obra poética de Natália, mas em toda a sua obra, precisamente a Mãe e a Ilha. Há que não esquecer que Natália era açoreana de origem e que foi criada pela mãe, pianista, uma vez o seu pai teria fugido para o Brasil. Aliás, o quarto soneto tem como subtítulo “sempre que ouço piano”, referência inequívoca á figura da Mãe: um e outro são indissociáveis nas obras de Natália.
“Louvado Seja o Génio da Noite”. É mais antigo do que o mundo que a noite seja associada à morte, pelo que os quatro sonetos deste capítulo serão talvez os mais ambivalentes de todo o livro. “Lenta declina a luz e a noite vai/ Entrando no tardo entardecer./ Vaga e intérmina uma folha cai,/ Subtil suspira um deus nesse descer.” Palavras que falarão por si. Mas talvez a mais clara passagem deste livro seja “Génio da eternidade enternecida,/ Dá-me do sonho a loucura exacta/ Que liberta a alma taciturna.” Clara porque nos revela exactamente o espírito com que Natália Correia olha a morte. Não há, em momento algum, um lamento pela partida. Pelo contrário, morrer é um acto heróico a fazer de cabeça levantada.
Ela própria tem noção de que “Nascer é um deus que prega uma partida”, que “Eu não sou deste mundo.”.
Ainda a destacar é o capítulo “Do Amor que Acorda o Espírito que Dorme”, dividido em “O Corpo”, “A Alma” e “O Espírito”, três dos melhores poemas da obra da autora. E, claro, o poema que, para todos os efeitos, foi o seu último, misto de ironia (Uma vez que Natália não foi nunca católica.) e de discurso de quem não lamenta a vida. Nem a morte.
Ele aqui fica:

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de uma astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Amén.


NOTA: Para quem conhece o volume da “Poesia Completa”, montado pela autora ainda em vida, e publicado pela Dom Quixote, já na segunda edição, não é novidade que o conceito original deste livro seria serem sonetos e cantigas de amigo, em capítulos separados. No entanto, Natália acabou por decidir incluir apenas os sonetos, pelo que considero o poema acima o último da sua obra.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Herberto Helder:A Faca Não Corta o Fogo

ABRUPTO PESADO POEMA

Há uns dias uma amiga minha disse-me que não está a gostar muito do novo romance de José Saramago. Colocou a hipótese de tal opinião se dever a não o ter lido todo, ainda; mas uma consideração destas é certamente permitida apenas ao cidadão anónimo. O crítico, ou o crítico comum, não se atreve a criticar negativamente uma obra de um autor de reconhecido mérito.
No entanto, eu não sou um crítico, sou um mero blogger, mais ou menos anónimo, e ainda me posso dar ao luxo de criticar negativamente um autor de reconhecido mérito.
Não vou falar do novo romance de José Saramago porque, para minha vergonha, ainda nem o comecei a ler. Vou falar, isso sim, de “A Faca Não Corta o Fogo” de Herberto Helder, e o leitor já deve ter percebido que vou dizer mal. Não vou dizer só mal, mas isso vê-se já.
Herberto Helder maravilhou a crítica e os leitores de poesia com “A Colher Na Boca” de 1961 (Ainda que já tivesse dado à estampa o folheto “O Amor Em Visita” três anos antes.). Prosseguiu com pontos altos como “Poemacto” (1961), “A Máquina Lírica” (1964), “Cobra” (1977), “O Corpo O Luxo A Obra” (1978), “A Cabeça Entre As Mãos” (1982) ou “Última Ciência” (1988), ou com os contos de “Os Passos em Volta” (1963) ou “Photomaton & Vox” (1979).
A partir do início dos anos 80 deixa de dar entrevistas, silencia-se a não ser na própria obra, resultado: é mitificado.
Não me vou estender partilcularmente na minha opinião sobre o artigo no Ipsilon sobre este assunto, mas digo isto: é absolutamente ridículo que alguém (Alguém que é Hélia Correia.) diga “como é possível escrever depois de Herberto Helder?”, e é ridículo que se mitifique tanto um autor, com coisas que muitas vezes não são muito exactas, como o elogio à originalidade do título “Herberto Helder ou o Poema Contínuo”, quando, em 1981, foi publicado um livro chamado “Poesia Contínua”.
Quero com isto dizer que uma coisa é Herberto Helder ser um dos maiores poetas vivos, o que considero verdade, outra coisa é fazer dele um deus inigualável, o que considero uma enorme mentira.
Aparte de questões paralelas à obra propriamente dita, é verdade que Herberto já nos deu alguns dos mais belos textos a constar na poesia portuguesa, e é verdade que já escreveu livros assinaláveis, e que tem um percurso muito particular no que toca às suas edições.
No entanto, “A Faca Não Corta o Fogo”, publicado com grande escândalo após um hiato de 14 anos, vem contrariar tudo isto: primeiro, é feito um livro de capa dura (De um autor que tantas vezes publicou folhetos.), que fica no centro de uma campanha comercial/consumista absolutamente vergonhosa.

É-nos apresentado como “Súmula e Inédita”. Um dos aspectos que achei particularmente interessante no artigo do Ipsilon foi dizerem que Herberto reescreve constantemente a sua obra. Ao longo da súmula, alguns dos poemas aparecem exactamente como no volume de “Poesia Toda”, e noutros, as alterações resumem-se a suprimir uma vírgula ou acrescentá-la, ficando o leitor sem perceber se se trata de uma reescrita ou da correcção de uma gralha de tipografia.
O título do livro provém de um ditado grego que diz “não é com uma faca que se corta o fogo”. Num dos poemas, Helder dirá “eu, que tenho o dom das línguas, senti/ a linha sísmica atravessando a montagem das músicas,/ e ouvi chamarem-lhe lírica,/ numa língua nenhuma que não sabia,/ e os acertos e erros do meu nome não eram traduzíveis/ nas línguas do meu dom,” (pag.169). Podemos daqui retirar uma leitura simples: há certas impossibilidades que na poesia se tornam possíveis, são possíveis enquanto palavras, intraduzíveis, mas são inacessíveis a um objecto físico- a faca, neste caso.
É neste tipo de “momentos” que esta poesia parece mover-se: a descrição de momentos, de movimentos interiores, de forças invisíveis, do amor ou da própria escrita, sempre com a noção de que há algo que as transcende e que só é atingível pela poesia.
Por isso mesmo, é de estranhar que surjam poemas mais fracos, onde parece que este “lirismo” vem dar lugar a um relato de uma situação em tudo prosaica, o discurso de uma prostituta ou um aluno a falar para um professor. São momentos que certamente terão o seu quê de poético. Mas, há que ter em conta que este livro segue o protocolo de “O Poema Contínuo” em que os poemas surgem seguidos, separados apenas por estrelas, o que só reforça a sua sequência. E no meio da beleza de passagens como “cabelos amarrados quentes que se desamarram,/oh, quero-te em volta de luz batida,/em língua máxima (…)” (pag.137), torna-se ainda mais esquisito que haja estes laivos de algo mais “mundano”.
Concrectamente, no que toca aos inéditos, Herberto Helder está longe de estar no pico da sua originalidade ou qualidade. É certo que econtramos aluguns poemas belíssimos e ao nível dos livros que fizeram a história deste autor, no entanto, não se pode dizer que “A Faca Não Corta o Fogo” traga algo de particularmente novo ao que Herberto já escreveu anteriotrmente. A este facto, acrescente-se que há ainda poemas absolutamente herméticos ou completamente dissidentes daquilo que, em maior número, constitui esta obra.
É também significativo que o último poema diga “abrupto termo dito último pesado poema do mundo” (pag.207). Uma ideia que dá muitas ideias. A pensar.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Wanda Ramos: As Incontáveis Vésperas

TROVA DO TEMPO QUE (NÃO) PASSA

De justiças e injustiças se faz a História. E a da Literatura, como História que é, também.
Wanda Ramos é um belo exemplo de uma injustiça, arrisco (Digo “arrisco” porque não lhe conheço a obra completa.). Quer-me parecer que, onze anos que passaram sobre a sua morte terão sido suficientes para que o seu nome se perdesse. Injusto.




A escritora nasceu no Dundo, Angola, em 1948, e morreu de surpresa em 1998 em Lisboa. Em 1970 publica em edição de autor o livro de poesia “Nas Coxas do Tempo”. Apesar de ter sido incluida em antologias como “Experiência da Liberdade” em 1975, a sua estreia comercial só acontece em 1979, na editora Oiro do Dia, com a plaquete “E Contudo Cantar Sempre”. No mesmo ano, “Que Rio Vem Forçar a Entrada Desta Casa?” é incluido na “Jovem Poesia Portuguesa- volume 1” da Limiar, ao lado de Eduarda Chiote e João Camilo. Em 1983 publica um volume de prosas poéticas na &etc, “Intimidade da Fala” e a sua obra poética termina três anos depois com “Poe-Mas-Com-Sentidos”.
Estreou-se na prosa com “Percursos (Do Luachimo Ao Luena)” em 1981 (Com o qual venceu o Grande Prémio da APE.), e publicaria ainda em prosa, quer romance quer contos, “As Incontáveis Vésperas” (1983), “Os Dias, Depois” (1990), “Litoral (Ara Solis)” (1991) e o póstumo “Crónica com Estuário ao Fundo” (1999), além de dispersos como “Um Homem de Cabeça de Pedra” (1988) na Colóquio Letras.
Acabo o ano de 2008 precisamente a acabar o seu segundo romance, “As Incontáveis Vésperas”. Foi um livro no qual tropecei por acaso, numa feira no Mercado Ferreira Borges, e que me venderam pelo brutal preço de 1 euro. Conhecia o nome do catálogo da &etc, e de alguns poemas com os quais já me cruzara.
A minha experiência com a sua prosa é esta: li e quero mais. Recomendo.


“As Incontáveis Vésperas” não é um romance único e absolutamente insólito. É, no entanto, um romance importante. Trata-se do romance muito em voga no pós-25 de Abril, em que a emancipação da mulher é o assunto central. No entanto, o que diferenciará o que é escrito por estar em voga do que é escrito porque tem que ser escrito e porque tem algo a dizer é precisamente o tempo que passa sobre a época: neste caso, parece-me que Wanda Ramos produziu aqui um retrato implacável de uma sociedade e dos seus costumes, e de uma forma muito particular. Não foi a única. Cito, a título de exemplo, “Notícia da Cidade Silvestre” de Lídia Jorge, publicado no mesmo ano, ou “A Madona” de Natália Correia.
O romance coloca-nos perante um antagonismo claro, logo de início: Augusta Rosa e a sua “saleta sem novidade” e a sua neta, Sara, heroína da história. Por um lado uma tradicionalista avó, ridícula nas suas tentativas de mascarar a sua velhice e a sua vida sensaborona (Maquilhando-se, dando-se a interesses repentinos por mobílias ou animais.), ao mesmo tempo que as vive em pleno, e com comportamento de mártir (Queixando-se à empregada ou fazendo da neta alvo do seu rancor.). Por outro lado, uma adolescente a enfrentar as alterações do corpo, e a renegar todos os códigos sociais e comportamentais que lhe são impostos. Mas, estamos nos anos sessenta, numa época da mais evidente e rígida opressão, onde todas as ideias rebeldes devem ser experienciadas na mais remota intimidade. Uma época em que se vive de incontáveis vésperas de uma mudança que nunca chega a ser consumada.

Um parêntesis para uma nota sobre o título: a formação de Wanda Ramos em Letras não deixa de se notar na atenção que dá às palavras: por “incontáveis vésperas” podemos entender que são vésperas inúmeras, ou seja, antecipações de algo que nunca chega a concrectizar-se; mas por outro lado podemos entender que são vésperas incontáveis, impossíveis de relatar: a ideia do tempo e da sua adulteração dos factos não é estranha à obra da escritora, e, ao longo do romance, é notória a dificuldade que a personagem Sara revela em expressar o seu ódio e o seu desejo de fuga para algo maior.
Ainda a propósito da atenção às palavras, é de notar a reconstituição de linguagem mais recuada que a autora consegue fazer, de uma forma natural ou não, mas que ajuda, de facto, o leitor a inserir a história no seu tempo, sem necessidade de indicação de datas unívocas (Ainda que estas surjam ocasionalmente.).

Nisto encontramos Sara, enclausurada numa família onde o parecer se sobrepõe ao ser e numa cidade onde nunca há nada de novo a fazer e onde não existe a mínima vontade de mudar, com “Os estores do mundo descidos, podadas em suas casas as poucas rebeldias…” (pag.153)
Estamos, pois, perante uma heroína sem meios para vencer, sem que isso a torne menos heroína, pois “…se se diz que dos fracos não reza a história, eu antes diria que é de certos mortos (…), dos mortos idos representando o seu papel de amputação dos filhotes, transmitido esse à geração seguinte, levado como facho de vitória pelos descaminhos vários, que afinal nunca são as coisas que se teriam previsto(…)” (pag. 39)
São questões destas que o livro coloca em causa- As tentativas de Sara para se soltar do seu facho, quer seja nos braços de Paulo ou nos delírios com Amador, quer ao escrever nas páginas do seu diário ou nas suas cartas, revelam-se sempre insuficientes, por serem falsas soluções- Paulo representa a típica mentalidade machista, querendo “desflorá-la para que ficasse guardada para ele”, Amador é um personagem cujo aspecto e a conduta eram impensaveis para a época (Por acaso, em tudo condiz comigo, menos no nome, foi estranho…) pelo que acaba por desaparecer misteriosamente; as páginas do diário nunca saírão da sua intimidade, e as cartas serão endereçadas a uma amiga com quem cortará. Ou seja, é uma contra todos, e ela perde. Perde porque, por vezes, se encontra contra si própria. Este texto é prodigioso em descobrir os pontos onde a influência dos outros, ainda que reconhecidamente reprovada, consegue fazer-se sentir e não ser contornada.

Também é preciso ter em atenção que este é um relato claramente de uma mulher, inacessível ao homem mais objectivo. A sensibilidade e as sensações partem de um corpo que se auto-descreve. E, nessa auto-descrição (Diferente de auto-biografia.) não se perde, de todo, a linguagem que Wanda Ramos terá herdado dos seus livros de poesia que, no seu grosso, já estavam escritos nesta altura.
Por fim, Wanda chega ao fulcro das dúvidas humanas patentes neste livro- Porque será que as ideias repressoras e conservadoras se afirmam sempre conta o corpo? Contra o sexo e a experiência do corpo? Afinal, porque não poderia uma mulher ir ao café? Ou que mal tinha que se masturbasse? Ou porque não lhe explicavam o que era a menstruação? Assim nos podemos perguntar: qual o peso nocivo do corpo para que se renegue tão frequentemente?
São perguntas cujas respostas variarão conforme quem as faz.
Mas, numa época em que parecemos (Enquanto sociedade.) estar a voltar a um certo conservadorismo, faz este romance todo o sentido, acho eu. Wanda Ramos é, onze anos depois, um nome a reter para quem, como eu, não a conhecia.

Antes do fim, gostava de agradecer ao João e à Conceição que no dia 1 de Maio de 1985 compraram este livro, e depois o venderam. Só assim o pude comprar numa feira por 1 euro, vinte e três anos depois.